Crime e Castigo, ou como um artista transcende suas idéias
Diz-se que Dostoievski era moralista, monarquista, xenófobo e reacionário.Até aí nada de mais: além de ser tudo verdade, o próprio autor era reconhecidamente orgulhoso de tais concepções.Mas o que o torna um autor superlativo é exatamente a prodigiosa capacidade que possuía de ir além dos preconceitos que cultivava.Crime e Castigo pode ser uma obra pungente, desvairada, opressiva, sutil, sarcástica... Tudo, menos reacionária.
Poderíamos até dizer que seria predominantemente uma obra sobre a loucura.Assim como em outras obras de Dostoievski, muitos de seus personagens parecem tremular vacilantes sobre a tênue linha que separa a sanidade da loucura.Raskolnikov, afinal, passa mais de meio milhar de páginas dessa forma; Marmieladov se enquadra numa categoria recorrente de personagens dostoievskianos: o do homem que, convencido da indignidade da vida que leva, ainda assim não consegue deixar de chafurdar na lama, talvez por uma satisfação mórbida de sofrer ao aviltar seus tão nobres princípios com a infâmia de sua situação.Ekatierina Ivanovna, por sua vez, parece estar louca devido à tuberculose e à extrema pobreza na qual vive, mas sua insânia parece se dever ao desejo de fugir da precariedade da situação atual que vive, se refugiando num passado que lhe parece glorioso, sejam tais reminiscências verdadeiras ou inventadas.A mesma loucura com o objetivo de fuga se revela na mãe de Raskolnikov, ao tentar espantar os terríveis pressentimentos que tem sobre a sorte do único filho.Razumikin é o grande contraponto: nessa história que mais parece acontecer num asilo de loucos, ele faz jus à raiz do nome (vrazum, em russo, significa ajuizado), e parece estar ali para ser a medida pela qual podemos julgar a real situação da sanidade mental dos demais.
No campo das idéias, as batalhas se dão em dois campos: a concepção de Raskolnikov de que alguns indivíduos fariam as leis, não precisando se submeter a elas, não é diretamente confrontada no campo da dialética.Mas podemos ver a maneira magistral como Porfiri Pietrovic submete, a idéia e seu proponente, à exaustão sem negá-la enfaticamente, mas apenas cerceando-a pelos lados, sorrateiro como o lobo que embosca a presa.É testando a resistência de Raskolnikov que ele a derrota de forma magistral, terminando por praticamente lhe extrair a confissão.Por outro lado, ainda podemos perceber uma crítica, não às idéias modernas em si, mas em relação à postura, tão comum na época quanto hoje, de aceitá-las sem nenhum exame prévio, simplesmente por serem "modernas".Assim são Luzhin, que se vangloria apreciador das mesmas apenas para se pavonear diante de todos e se provar merecedor da preferência de uma mulher bonita, jovem e inteligente.Já Liebiesiatnikov é o típico revolucionário de personalidade amorfa, como bem mostram as palavras do próprio autor, uma descrição atualíssima: "Fazia parte dessa imensa e variegada massa de indivíduos comuns de tipos fracassados e vulgares, que tomam rapidamente o partido das novas idéias que estão em voga, para no momento seguinte desvirtuar e desacreditar a causa que antes sinceramente defendiam". (qualquer semelhança com o esquerdismo atual NÃO é mera coincidência, seja bem dito).
Finalmente, a trajetória de Raskolnikov, o prato principal do romance; podemos notar nela vários elementos autobiográficos, mas deixemo-los de lado.Pode-se notar claramente que a queda de Raskolnikov se dá através da mesma combinação que forma ditadores e psicopatas: coisa nenhuma na barriga, uma idéia na cabeça e um machado na mão.Mas o lado humano transcende: Raskolnikov não tem o sangue frio que imaginava ter, ou não estava tão convicto da teoria que elaborou.Se desfaz do dinheiro, desmaia, se acusa acintosamente, no que não é levado a sério por conta do estado de loucura em que se encontrava.Até o momento em que encontra alguém com uma trajetória parecida com a sua: também Sônia se submeteu a uma indignidade por causa da probreza.Só que o que nele abunda em orgulho, nela transborda em compaixão.A culpa que o oprime e condena a ela redime e dá forças para seguir em frente, até que ele termina por se render a ela, e percorrerem juntos o caminho tortuoso que separa a desgraça da redenção.Poderíamos dizer que, de fato, idéias demais atrapalham.Sônia não tem a cultura de Raskolnikov, e por isso suporta e supera sua infâmia de forma menos traumática, extraindo dela forças para continuar vivendo.
Por fim, não posso encerrar sem depor a favor da transcendência de Dostoievski em relação às suas idéias.Como um moralista quadradão e simplório poderia criar um personagem tão amoral, cínico e carismático como Svidrigailov? De todos os personagens do livro, de longe o mais cativante, sensual, calculista e generoso da obra, daquela generosidade leve e natural, como se ajudar os órfãos de Ekatierina Ivanovna lhe causasse tanto prazer como pôr nas pernas uma ninfeta de dezesseis anos de idade.
Dostoievski era de fato um reacionário xenófobo e mesquinho.Mas simplório e óbvio, jamais.
<< Home