Exercício de Futurologia: O Futuro do Oriente Médio - Parte III
Para melhor compreensão do que será narrado adiante, pedimos ao leitor que retorne ao ponto no qual estávamos ao encerrar a primeira parte, antes do Irã ser ocupado pelas grandes potências. Estamos em meio ao pandemônio que se tornou o Iraque depois que as tropas de ocupação capitaneadas pelos Estados Unidos e pelo Reino Unido bateram em retirada, vencidas pelo cansado ou por lavarem as mãos considerando cumprida a sua tarefa. Enquanto xiitas e sunitas disputam encarniçadamente o controle do resto do país, a minoria curda, que desde meados dos anos 90 possui grande autonomia sobre o território do norte, tratará de consolidar o poder em seus domínios e mantê-los longe da violência que domina as terras a jusante dos rios Tigre e Eufrates. Na prática, constituirão um país independente, e não tardarão em decretar sua soberania e buscar reconhecimento internacional. Aí entramos em outra parte delicada do mosaico de conflitos do Oriente Médio: a questão curda.
Os curdos não são árabes. Vieram da Ásia Central na mesma época em que os turcos, e falam um idioma indo-europeu, como os persas do Irã. Estão espalhados em um território que ocupa a montante e as nascentes dos rios mesopotâmicos, distribuído entre cinco nações: Turquia, Síria, Iraque, Irã, e Azerbaijão. Converteram-se ao islamismo na época do califado dos Abássidas, mas isso não impediu que fossem tratados como cidadãos de segunda classe pelos diversos mandatários que dominaram aquelas terras. Árabes, persas e turcos compartilham entre si, além da fé em Alá e seu profeta, Maomé, a desconfiança em relação aos agregados incômodos de território e crença.
Não é difícil imaginar o rebuliço que o surgimento de um estado curdo ao norte do Iraque causará entre os vizinhos que abrigam minorias curdas em seus territórios. Os curdos sírios, turcos e iranianos já mantêm uma convivência tensa com seus respectivos governos, e o surgimento da pátria curda fará explodir de vez o desejo de reunir todos os curdos num mesmo território, constituindo o Curdistão. As minorias não tardarão em se rebelar, e seus governos, menos ainda em reprimi-las. No Irã, o regime dos aiatolás, na iminência de sofrerem uma invasão, terão dificuldade em lidar com um levante curdo em seu território, podendo tal insurreição ser até mesmo o estopim da invasão pela coalizão sino-americana com o apoio da ONU. Tendo que combater inimigo tão poderoso, não sobrará tempo nem meios ao regime dos aiatolás para conter seus curdos, e os aliados, assim que tomarem o poder, não se atreverão a mexer em mais este vespeiro. Que se resolvam entre si.
A Síria, que abriga relevante minoria curda, também não admitirá a perda de suas terras às margens do Eufrates, muito menos para um estado curdo. Só que o regime de Bashar Assad já vem dando mostras de enfraquecimento desde a humilhante retirada do Líbano, onde sua presença parecia eterna. Assad Júnior não tem a firmeza nem a força do pai Hafez, muito menos o apoio, já que se sabe que se conspira ativamente em pleno território sírio para a sua derrubada. O caráter pretensamente laico de seu regime, mais a política de equilíbrio que mantém entre a maioria sunita e os alauítas, dissidência radical do Islã muito influente na família e no governo dos Assad, também não ajudam muito. Somando-se a essa instabilidade interna uma insurreição dos curdos, tem-se o cenário perfeito para a sua derrubada, e enquanto forças leais ao governo e opositores se digladiam pela posse do poder, o caminho estará aberto para os curdos do país, auxiliados pelo Curdistão iraquiano, independente de fato e com dinheiro do petróleo para financiar os levantes inflamados pelo patriotismo curdo, arrastarem o leste da Síria para se unir aos seus vizinhos iraquianos.
Resta a Turquia, que já mantém um conflito surdo e tumultuado com a minoria curda do leste do país. Ankara não admitirá sob hipótese alguma a existência de um estado curdo em suas imediações, e tentará uma aliança com os demais governos interessados em esmagar o esforço curdo em constituir sua própria nação. Acontece que os regimes do Irã e da Síria, segundo nossas projeções, estarão fazendo água, enfrentando demônios externos e internos, e não obstante possam formar uma frente unida e coesa anti-curda, logo os turcos se verão sozinhos em meio a esta batalha. Para além disso, há outra dificuldade: a Turquia, ao contrário de seus vizinhos, é uma democracia. Uma democracia meio que dependente dos militares, é verdade, mas uma democracia de fato e que já dura décadas. E em democracias, a opinião pública desempenha um papel bem maior no desenrolar das guerras do que em ditaduras, vide o exemplo dos Estados Unidos, que perderam nas ruas de suas próprias cidades uma guerra que venceram com sobras nos campos de batalha. Caso o confronto com os curdos se prolongasse, alternativa bastante plausível devido ao relevo íngreme da região conflagrada, a opinião pública talvez cansasse de mandar seus filhos para morrerem em luta por um território habitado por estrangeiros que os odeiam. O fator União Européia seria sobremaneira decisivo. Como se sabe, os turcos empreendem há décadas um esforço para entrarem no Mercado Comum Europeu, e sucessivos governos que passaram por Ankara têm se empenhado em dar uma “ocidentalizada” no país, de modo a convencer os europeus a confiar neles. Certamente os europeus querem distância de encrencas étnicas, de tal modo que a guerra contra os curdos arruinaria os esforços de tantos anos. Tudo isso terminaria desgastando o governo, que se veria forçado a se retirar da região e aceitar a independência de fato do Curdistão, embora empreendesse esforços diplomáticos para impedir o seu reconhecimento como nação soberana. De tal modo que teríamos um novo estado na região, o Curdistão, formado pelo norte do Iraque, leste da Síria e oeste do Irã, um estado verdadeiramente nacional, formado em torno de uma coesão étnica e cultural de um povo, coisa que falta no Oriente Médio.
As conseqüências do nascimento desta nação serão indeléveis e imprevisíveis. O certo é que o Oriente Médio terá a partir de então uma Turquia cada vez mais voltada para o ocidente, esquecendo os povos árabes com os quais não tem nenhuma identidade cultural além da religião. Na Síria, é provável que surja um estado fundamentalista, que será a nova base do terrorismo internacional e incomodará bastante Israel e será permanente fonte de instabilidade para os vizinhos, notadamente os libaneses. O Irã do pós-guerra, como dissemos, será um país razoavelmente estável, mas assolado por uma guerrilha persistente e difícil de ser derrotada. O que sobrar do Iraque continuará sendo foco de contínuas tensões religiosas entre sunitas e xiitas, com o Irã auxiliando estes e Arábia Saudita, Síria e demais nações sunitas das redondezas apoiando seus partidários de crença. Não será um país conflagrado, mas tenso, como o foi o Líbano nos anos 90. Não se descarta a possibilidade de uma guerra aberta e sangrenta entre o novo regime da Síria e Israel. Há ainda o imprevisível efeito que tudo isto exercerá sobre o fundamentalismo islâmico. Essas são questões a ser posteriormente trabalhadas.
Os curdos não são árabes. Vieram da Ásia Central na mesma época em que os turcos, e falam um idioma indo-europeu, como os persas do Irã. Estão espalhados em um território que ocupa a montante e as nascentes dos rios mesopotâmicos, distribuído entre cinco nações: Turquia, Síria, Iraque, Irã, e Azerbaijão. Converteram-se ao islamismo na época do califado dos Abássidas, mas isso não impediu que fossem tratados como cidadãos de segunda classe pelos diversos mandatários que dominaram aquelas terras. Árabes, persas e turcos compartilham entre si, além da fé em Alá e seu profeta, Maomé, a desconfiança em relação aos agregados incômodos de território e crença.
Não é difícil imaginar o rebuliço que o surgimento de um estado curdo ao norte do Iraque causará entre os vizinhos que abrigam minorias curdas em seus territórios. Os curdos sírios, turcos e iranianos já mantêm uma convivência tensa com seus respectivos governos, e o surgimento da pátria curda fará explodir de vez o desejo de reunir todos os curdos num mesmo território, constituindo o Curdistão. As minorias não tardarão em se rebelar, e seus governos, menos ainda em reprimi-las. No Irã, o regime dos aiatolás, na iminência de sofrerem uma invasão, terão dificuldade em lidar com um levante curdo em seu território, podendo tal insurreição ser até mesmo o estopim da invasão pela coalizão sino-americana com o apoio da ONU. Tendo que combater inimigo tão poderoso, não sobrará tempo nem meios ao regime dos aiatolás para conter seus curdos, e os aliados, assim que tomarem o poder, não se atreverão a mexer em mais este vespeiro. Que se resolvam entre si.
A Síria, que abriga relevante minoria curda, também não admitirá a perda de suas terras às margens do Eufrates, muito menos para um estado curdo. Só que o regime de Bashar Assad já vem dando mostras de enfraquecimento desde a humilhante retirada do Líbano, onde sua presença parecia eterna. Assad Júnior não tem a firmeza nem a força do pai Hafez, muito menos o apoio, já que se sabe que se conspira ativamente em pleno território sírio para a sua derrubada. O caráter pretensamente laico de seu regime, mais a política de equilíbrio que mantém entre a maioria sunita e os alauítas, dissidência radical do Islã muito influente na família e no governo dos Assad, também não ajudam muito. Somando-se a essa instabilidade interna uma insurreição dos curdos, tem-se o cenário perfeito para a sua derrubada, e enquanto forças leais ao governo e opositores se digladiam pela posse do poder, o caminho estará aberto para os curdos do país, auxiliados pelo Curdistão iraquiano, independente de fato e com dinheiro do petróleo para financiar os levantes inflamados pelo patriotismo curdo, arrastarem o leste da Síria para se unir aos seus vizinhos iraquianos.
Resta a Turquia, que já mantém um conflito surdo e tumultuado com a minoria curda do leste do país. Ankara não admitirá sob hipótese alguma a existência de um estado curdo em suas imediações, e tentará uma aliança com os demais governos interessados em esmagar o esforço curdo em constituir sua própria nação. Acontece que os regimes do Irã e da Síria, segundo nossas projeções, estarão fazendo água, enfrentando demônios externos e internos, e não obstante possam formar uma frente unida e coesa anti-curda, logo os turcos se verão sozinhos em meio a esta batalha. Para além disso, há outra dificuldade: a Turquia, ao contrário de seus vizinhos, é uma democracia. Uma democracia meio que dependente dos militares, é verdade, mas uma democracia de fato e que já dura décadas. E em democracias, a opinião pública desempenha um papel bem maior no desenrolar das guerras do que em ditaduras, vide o exemplo dos Estados Unidos, que perderam nas ruas de suas próprias cidades uma guerra que venceram com sobras nos campos de batalha. Caso o confronto com os curdos se prolongasse, alternativa bastante plausível devido ao relevo íngreme da região conflagrada, a opinião pública talvez cansasse de mandar seus filhos para morrerem em luta por um território habitado por estrangeiros que os odeiam. O fator União Européia seria sobremaneira decisivo. Como se sabe, os turcos empreendem há décadas um esforço para entrarem no Mercado Comum Europeu, e sucessivos governos que passaram por Ankara têm se empenhado em dar uma “ocidentalizada” no país, de modo a convencer os europeus a confiar neles. Certamente os europeus querem distância de encrencas étnicas, de tal modo que a guerra contra os curdos arruinaria os esforços de tantos anos. Tudo isso terminaria desgastando o governo, que se veria forçado a se retirar da região e aceitar a independência de fato do Curdistão, embora empreendesse esforços diplomáticos para impedir o seu reconhecimento como nação soberana. De tal modo que teríamos um novo estado na região, o Curdistão, formado pelo norte do Iraque, leste da Síria e oeste do Irã, um estado verdadeiramente nacional, formado em torno de uma coesão étnica e cultural de um povo, coisa que falta no Oriente Médio.
As conseqüências do nascimento desta nação serão indeléveis e imprevisíveis. O certo é que o Oriente Médio terá a partir de então uma Turquia cada vez mais voltada para o ocidente, esquecendo os povos árabes com os quais não tem nenhuma identidade cultural além da religião. Na Síria, é provável que surja um estado fundamentalista, que será a nova base do terrorismo internacional e incomodará bastante Israel e será permanente fonte de instabilidade para os vizinhos, notadamente os libaneses. O Irã do pós-guerra, como dissemos, será um país razoavelmente estável, mas assolado por uma guerrilha persistente e difícil de ser derrotada. O que sobrar do Iraque continuará sendo foco de contínuas tensões religiosas entre sunitas e xiitas, com o Irã auxiliando estes e Arábia Saudita, Síria e demais nações sunitas das redondezas apoiando seus partidários de crença. Não será um país conflagrado, mas tenso, como o foi o Líbano nos anos 90. Não se descarta a possibilidade de uma guerra aberta e sangrenta entre o novo regime da Síria e Israel. Há ainda o imprevisível efeito que tudo isto exercerá sobre o fundamentalismo islâmico. Essas são questões a ser posteriormente trabalhadas.
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