O Conclave dos meus sonhos
O povo se movimenta intrépido na Praça São Pedro ao ver a fumaça saindo da Capela Sistina. Gritos e ovações pairam em suspenso na garganta, prontos para explodir em apoteose caso a fumaça seja branca. Olhos atentos para identificar a cor que pode reprimir ou libertar o júbilo. Porém, o sentimento que a cor liberta não é o de alegria, mas sim o de pasmo: a fumaça é vermelha!
Nem mesmo o badalar alegre dos sinos anunciando a escolha do novo pontífice alivia o estupor da multidão, que nesse momento está atônita e assustada. Profecias obscuras sobre o início do Juízo Final no dia em que a fumaça anunciadora da escolha do novo Papa não fosse branca são ressuscitadas, e no burburinho que percorre rapidamente todos os cantos da Praça de São Pedro, ganham dimensões apocalípticas. Alguns tentam sair correndo e um pequeno tumulto começa, reprimido pela ação da polícia, temerosa de algum possível dano ao patrimônio histórico do Vaticano. Mas eis que as cortinas da sacada do Palácio Apostólico se abrem, e o terror pelo apocalipse iminente não consegue ser mais forte do que a curiosidade em saber quem é o homem que motivou a fumaça escarlate que emanou da chaminé da capela.
Um cardeal—Vestido, obviamente, de vermelho—Sai à sacada para fazer o anúncio do nome do novo pontífice. Arruma sua mitra, dá um grau na estola, corrige levemente a posição dos óculos e começa a ler:
—Annuntio vobis gaudium magnum; habemus Papam: Eminentissimum ac Reverendissimum Dominum, Dominum Caius Sanctae Romanae Ecclesiae Cardinalem De Boca qui sibi nomen imposuit Alexander VII.
Uma leve conferida de memória na lista dos papáveis não encontra o nome do pontífice recém-eleito. Fora, sem sombra—Ou fumaça—De dúvida, um azarão que surpreendeu na reta final. Cardeal Caio De Boca, quem seria ele? Por que a fumaça que o anunciou era rubra? Por que adotar um nome pontifício que há séculos não era usado e já considerado proscrito pelas atitudes escandalosas e pouco cristãs de seu último detentor? As perguntas se calam à entrada do Papa. Mais uma para a coleção de surpresas desse dia histórico: o Santo Padre não traja a tradicional veste branca, nem mesmo a veste cardinalícia. Apresenta-se ao público vestindo um roupão vermelho que lhe deixa desnuda uma parte do peito. Na mitra alguns detalhes com evidente sugestão fálica incutem horror em alguns rostos, mas no geral termina sendo uma pequena parte no já grande somatório de surpresas em que se constituía a eleição daquele pontífice singular, para dizer o mínimo. O novo chefe da Igreja Católica Apostólica Romana Solicita o microfone. Ele quer falar aos fiéis.Paira sobre a praça um silêncio de cripta, no qual se ouvem apenas as respirações dos presentes.
—É com alegria que vos comunico, irmãos, que os bons tempos estão de volta (Apesar de toda a evidência em contrário, os conservadores comemoram, certos de que o bizarro pontífice fará a Igreja voltar à época do Concílio de Trentto). Depois de mais de meio milênio de Papas sem graça, os cardeais, imbuídos da inspiração magna do Espírito Santo, elegeram a mim, um fauno degustador das boas coisas da vida que nosso bom Deus dispõe ao usufruto dos homens de boa vontade, para guiar seu rebanho nessa longa jornada rumo ao auspício de sua graça divina: o prazer. Invoco, pois, a memória de nosso grande pontífice Alexandre VI*, a quem singelamente homenageio ao adotar o mesmo nome, para que nos guie neste espinhoso caminho.
Neste exato instante, por sabe-se lá quais artifícios tecnológicos ou divinos, duas querubinas descem dos vitrais da Capela Sistina em direção ao Papa. Aportam uma de cada lado e, já estando nuas, retiram as parcas vestes que recobriam o corpo pontifício. O povo delira na praça, e já se podem ver evidentes manifestações de que esse pontífice já caiu nas graças do povo. Porém, para justificar o nome que tem, o Bispo de Roma não deseja cair nas graças do povo, e sim de boca nos jovens e deliciosos corpos das querubinas que lhe foram enviadas para o gozo de sua árdua missão. A multidão, extasiada, entende que essa é a senha para Cair de Boca—No pecado. E com uma orgia pública estrepitosa se encerra esse dia histórico no Vaticano. O dia com o qual Nietzsche sonhara, o dia no qual a vitalidade do corpo se imporia vitoriosa à corrupção dos instintos. Viva o Novo Papa!
*Alexandre VI, ou Rodrigo Bórgia, foi papa de 1493 a 1503. Dissoluto, corrupto e assassino, teve quatro filhos ilegítimos, amantes incontáveis e foi grande incentivador das artes da renascença.É meu papa preferido.
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