sábado, abril 09, 2005

A Incoerência Final


Se há algo que Karol Wojtyla sempre praticou por toda a sua vida, incluindo seu pontificado, foi a coerência.As posições que tomou a respeito dos mais diversos assuntos no decorrer desses vinte e seis anos foram marcadas pelo signo da polêmica, agradando e desgostando, dificilmente causando indiferença.Mas todos esses posicionamentos, por mais idiotas que tenham sido algumas vezes, sempre tiveram a virtude da coerência.

Quando militava contra o aborto e os métodos anticoncepcionais, o fazia sabendo ser incoerente ficar contra o primeiro e a favor dos últimos, como a maioria dos militates "pró-vida" fazem.Sabia que, se era errado proibir um feto de seguir seu curso e tentar se desenvolver no útero, era igualmente errado proibir um gameta de seguir seu curso e tentar a fecundação.Podem tachar tal posicionamento de retrógrado, mas jamais de contraditório.Quando se posicionou violentamente contra a Teologia da Libertação (uma tentativa abilolada de conjugar cristianismo e marxismo), o fez baseado na premissa lógica de que duas religiões não ocupam o mesmo lugar no espaço, e portanto conciliar dois sistemas dogmáticos não fazia o menor sentido.Quando se posicionou contra a eutanásia, o fez com base no pensamento cristão de que o sofrimento não deve ser evitado e a vida deve ser preservada a todo custo.

Mas, peraí? Como explicar então o posicionamento do papa em seus últimos dias? Por que ele se recusou a ir ao hospital quando a doença finalmente o dominou? Esperava-se, eu principalmente, que mesmo nos últimos momentos ele preservasse a coerência como marca registrada, e tentasse preservar sua própria vida a todo custo, bem como não procurasse meios de fugir ou abreviar seu sofrimento.

No entanto, Wojtyla não lutou pela sua vida quando já era evidente que a luta era inútil.Praticou ele mesmo a eutanásia que tanto combateu, ao se furtar deliberadamente a um tratamento sem esperança de sucesso.Caso fosse ao hospital, poderia ter sua vida preservada com o auxílio de aparelhos e medicamentos talvez por meses.Sofreria atrozmente, claro.Mesmo os constantemente sedados não escapam das dores lancinantes da agonia, uma vez que a ausência dos sedativos provoca síndrome de abstinência, e eles não podem ser ministrados em tempo integral.Ante à perspectiva de prolongar sua vida e sua agonia por meses, ele preferiu... Desistir, e com isso sofrer e viver apenas alguns dias.

Ainda não tenho a exata medida do quanto essa incoerência final pesará nas posições que o próximo pontífice venha a tomar a respeito dos mais diversos assuntos.Mas o fato é que os militantes pró-eutanásia, que antes tinham em João Paulo II um forte adversário, agora podem erguer seus últimos dias como estandarte na luta por sua causa.Não faço idéia do quanto o estado mental do Papa estava alterado pelas sucessivas enfermidades e pelo Mal de Parkinson, portanto não sei se tal incoerência foi resultado de uma decisão conscientemente tomada ou desvario de quem já não conseguia concatenar com precisão as idéias.Mas para quem passou a última semana de vida condenando a abreviação da vida de Terri Schiavo, abreviar a própria vida foi um aberrante depoimento contra os princípios que defendera por toda a vida.

Fazendo o balanço, acredito que a influência de Wojtyla foi mais positiva do que negativa.Naquilo em que ele podia intervir, ele o fez para o bem (ajudar a derrubar os regimes comunistas do leste).Condena-se muito sua posição contra os anticoncepcionais, mas convenhamos, se nem o próprio rebanho que ele comandava seguia seu pensamento nessa seara, podemos considerar a influência desse seu posicionamento praticamente nula.Naquilo em que ele poderia influenciar de forma negativa, portanto, ele simplesmente não conseguiu fazê-lo, e a eutanásia cometida contra si próprio pode influenciar de forma totalmente diversa da que ele pretendeu por toda a vida, e influenciará de forma positiva.No último ato, Wojtyla marcou, mesmo sem querer, um ponto a favor da humanidade.Admitamos que o ex-cardeal de Cracóvia foi um cara e tanto.Mesmo no dia em que o catolicismo for apenas objeto da curiosidade de estudiosos de religiões extintas, Karol será lembrado como um personagem relevante na derrubada da maior tirania que a humanidade já viu.E desse legado ninguém poderá despojá-lo.


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