A Somália Não É O Fim Do Mundo
Começo a pensar cada vez mais que uma lúdica sociedade sem estado começa a pairar no horizonte plúmbeo e nebuloso dessa alvorada de milênio.E a vanguarda começa num dos lugares mais atrasados da Terra.Dêem uma olhada nessa reportagem impressionante:
A Somália não é o fim do mundo29.Jun.2002
Pelo menos no estado do Rio de Janeiro, todo eleitor deveria,antes de votar, saber o que está acontecendo na Somália. Anárquico até paraos padrões da política africana, sem governo, sem capital, sem partidos e sem constituição desde 1991, o país conseguiu elevar a bagunça institucional a tais alturas que nos 636 mil quilômetros quadrados de seu território dividido e desolado ela virou uma forma de perfeição. Pelo menos a revista "National Geographic", na edição deste mês, apresenta a Somália como exemplo "supremo de livre mercado".
Não é pouco para um lugar caótico que, há um século, descrevia a si mesmo, pela voz do líder nacionalista Mohamed Abdullah Hassan, como um deserto que não tinha nada para justificar a presença dos colonizadores ingleses, fora pedras e cupins. Além disso, argumentava Hassan, por alcunha o Mulá Furioso, "eu gosto de guerra e vocês não". Não deu outra. Desde que 42 anos atrás os pedaços ocupados pela Inglaterra e a Itália naquela ponta do Chifre da África foram colados numa república independente, a Somália só teve de sobra camelos, conflitos, secas e fome.
Passou vinte e tantos anos, depois da independência, sob um general feroz, Siad Barre. Quando a ditadura militar caiu em 1991, os bandos que se armaram para derrubá-la passaram a retalhar o país em tribos separatistas.O norte virou a Somalilândia, nas mãos de um clã guerreiro. O sul foi tomado à unha por milícias islâmicas. O centro é disputado pela Etiópia, que ganhou uma fatia da velha colônia como presente de despedida da administração inglesa. Pelo menos vinte senhores feudais, equipados com armas modernas, disputam entre si o espólio do atraso, sejam seus próprios rebanhos de carneiro ou estoques de comida mandados de fora por comitês internacionais de ajuda.
Em Mogadíscio, a antiga capital, nem seus 900 mil habitantes sabem quem manda. Foi desertada pelos diplomatas quando 18 soldados americanos, enviados pela ONU como força de paz, morreram na cidade em combate com o Habr Gedir, um dos clãs guerrilheiros que assolam o país. De lá para cá, exceto quando meses atrás a história desse fiasco militar chegou ao cinema, o mundo mais ou menos se esqueceu da Somália, deixando-a entregue à fome e às escaramuças internas.
Deu certo, segundo o relato de Andrew Cockburn para a "National Geographic": "Como plantas desabrochando depois de um incêndio na mata, os somalis deram um jeito de sobreviver e construir por conta própria, em certos aspectos com mais êxito do que países em desenvolvimento que estão na fila da ajuda e da assistência internacional". Ou seja, desde que há sete anos deixou de ter qualquer forma aparente de governo, a Somália continuou devastada por todas pragas, menos as que o governo mandava.
Isso quer dizer, segundo a reportagem, que em Hargeysa, originalmente um campo de refugiados da Somalilândia, uma família nativa conseguiu levar água encanada a todos os moradores. Investiu no fornecimento uma ninharia e ganha com a exploração 20 dólares por semana. Voando mais alto, o empresário Abdirizak Ido bancou a Nationlink, uma das vinte empresas telefônicas da Somália, todas funcionando num sistema informal mais competitivo.Com Ido, em Mogadíscio uma linha telefônica chega à casa do freguês no máximo oito horas depois da inscrição e custa 10 dólares por mês. Celular é ligado na hora. As chamadas locais são gratuitas. As tarifas para ligações internacionais começam em 60 centavos de dólar por minuto, mesmo quando saiam de lugarejos no meio do deserto, onde o telefone passa por rádios de ondas curtas. Foi difícil? "Passamos por momentos de aperto", responde Ido,"mas era pior quando tínhamos um governo. Quando não há governo, existe oportunidade". E os processos de privatização dispensam propina, ele poderia acrescentar.
Com os serviços telefônicos à frente, diz a revista, "outros negócios estão florescendo em Mogadíscio e outros lugares. Gaalkacyo, um povoado no deserto central, tem luzes de rua, graças a Abdirizak Osman, um empresário local" que, de quebra, fornece eletricidade de graça para o único hospital da cidade. Abdul Dini, um sócio de Ido, abriu uma fábrica de espaguete, outra de plástico, uma engarrafadora de água mineral e uma panificadora. E há duas estações de TV a cabo disputando atualmente a audiência de Mogadíscio com uma programação que inclui cópias piratas de produções americanas poucas semanas depois do lançamento nos Estados Unidos.
Mas milagrosa mesma é a rede internacional para remessa de dinheiro, ligando à terra natal mais de um milhão de emigrantes somalianos por uma teia de relações pessoais, tribais ou familiares. Por ela, qualquer quantia que um somali entregue a seu cambista de confiança no interior dos Estados Unidos chega em menos 24 horas ao bolso do destinatário no meio do deserto.Mais de 700 milhões de dólares entram por ano no país sem que a banca internacional veja a cor dessa notas. E é esse dinheiro que mantém o fôlego do país.
Depois de tantos anos de esquecimento, ainda há na Somália quem tenha saudades de um governo mais ou menos organizado, o que dificilmente acontecerá sem intervenção estrangeira. Mas o repórter da "National Geographic" saiu de lá convencido de que, pela história recente, os "somalis se viram melhor se forem deixados por sua própria conta". O que é um consolo e uma esperança para os eleitores do Rio de Janeiro, numa campanha eleitoral em que o elenco de candidaturas parece escolhido a dedo para consolidar nas urnas a decadência política do estado. Se viver entre bandos armados e governos desfeitos não é o fim do mundo, como nos ensina a Somália, é provável que nada seja o fim do mundo.
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