Šrebrenica, 13-07-1995
Dez anos, hoje. Para a maioria, 13 de julho de 1995 é uma data como qualquer outra, refugiada no conforto do anonimato.Šrebrenica é apenas mais um lugar de nome exótico que deve ter aparecido alguma dia no noticiário para nunca mais voltar. Sequer sabe aonde fica (os mais atilados talvez percebam, pela grafia, de se tratar de algum lugar do Leste Europeu). No entanto, esse lugar e essa data deveriam estar tão profundamente marcados no imaginário dos horrores da humanidade quanto Babi Yar ou Auschwitz. Nessa pequena cidade bósnia, há exatos dez anos, a Europa revivia cenas de horror e barbárie que desde o final da Segunda Guerra não via, e acreditava jamais rever. Pois a 400 km de Roma, 1500 de Berlim, 2300 de Paris, em plena Europa e há bem pouco tempo, um crime hediondo se reunia ao já amplo histórico de atrocidades da nossa espécie.
Tudo começou em março de 1992, quando a Bósnia-Herzegovina se declara independente da Iugoslávia, seguindo Eslovênia, Croácia e Macedônia. O chefão do país, Slobodan Melosevic, no entanto, não aceitaria que seus protetorados lhe escapassem, não sem luta. Arma milícias sérvias (os sérvios são 1/3 da população bósnia) e começa um conflito encarniçado e fratricida, pois durante os quarenta anos sob o governo comunista do marechal Tito, católicos (eslovenos e croatas), ortodoxos (sérvios e macedônios) e muçulmanos (bósnios e albaneses) foram incentivados a se misturar; se tornaram amigos, vizinhos, cônjuges. As táticas de guerra das milícias sérvias comandadas por Ratko Mladic, apoiadas por Radovan Karadzic (fundador da república sérvia da Bósnia) e municiadas por Melosevic incluíam chacinas de crianças e estupros coletivos, pelo que o conflito encheu de horror os olhos do mundo civilizado.
Em 1993 a ONU envia forças de paz para a região (a esquerda mundial foi contra a “intervenção imperialista da organização fantoche dos EUA”) e declara, além de Šrebrenica, as cidades de Sarajevo, Zepa, Gorazde, Bihac e Tuzla como “áreas seguras”, que seriam guardadas por capacetes azuis. Só que a organização na qual tantos confiam deu um show de incompetência e inação no tocante à proteção dessas áreas. Tropas sérvias começaram a marchar em direção a Šrebrenica em 5 de julho de 1995. Em 9 de julho, caíam as últimas defesas da cidade. Os soldados holandeses enviados pela ONU eram apenas 600, contra mais de cinco mil sérvios. O comandante da tropa, coronel Tom Karremans, requisitou apoio de bombardeio aéreo à OTAN. Só que a ONU estava no comando da operação. Depois de implorar por ajuda, ele recebe a resposta lacônica que seu requerimento estava incorreto e deveria ser refeito. Ele então refaz o pedido, e dessa vez tem a resposta de que os caças estão a caminho. Só que eles demoram a chegar, e quando chegam, as tropas sérvias já haviam feito refens os holandeses. Sob a ameaça de matar todos os soldados da ONU, o comandante da operação, general Radislav Krstic, consegue fazer com que os aviões recuem.
Com as tropas rendidas, começa a triagem da população. Mulheres são levadas para longe das vistas dos homens, e então estupradas. Os homens da cidade com idade superior a doze anos foram levados durante três dias para os bosques vizinhos e metodicamente exterminados com tiros na cabeça. Do outro lado de uma cerca de arame farpado, os soldados da ONU assistiam a tudo, impassíves e impotentes. Kofi Annam não requisitou a intervenção da OTAN a tempo hábil para que a tragédia pudesse ser evitada. Enquanto pediu ajuda à Organização das Nações Unidas, Karremans teve suas solicitações rejeitadas. Quando cansou da incompetência da ONU e resolveu pedir ajuda diretamente a quem ia fornecê-la, era tarde demais. O número de mortos ainda é incerto. Fala-se em algo entre cinco mil e oito mil pessoas. Sem contar os estupros e saques.
Dez anos depois, Slobodan Melosevic está no banco dos réus no Tribunal Penal Internacional, em Haia, num julgamento que se arrasta há anos e que parece infindável. Radislav Krstic, comandante do batalhão de extermínio, foi condenado a 35 anos de prisão. Ratko Mladic e Radovan Karadzic, os superiores de Krstic e mentores da tática de estupros em massa & assassinatos de crianças, estão foragidos, escondidos, ao que tudo indica, com a conivência do governo sérvio. A ONU continua sendo considerada como a melhor (ou mesmo única) alternativa para se resolver os problemas do mundo. Mesmo depois dos fracassos clamorosos dela em Ruanda e na Bósnia. Basta ver a diferença da operação da ONU na Bósnia em 1995 e da OTAN, capitaneada pelos americanos, em 1999 no Kosovo. Na primeira, massacres horrendos numa guerra que durou três anos. Na segunda, algumas semanas de bombardeios (combatidos pela esquerda mundial, é sempre oportuno lembrar) e as tropas sérvias abandonaram o Kosovo. Talvez os mesmos que se opuseram a essa ação esbravejaram contra os americanos quando estes bombardearam Saddam Hussein e o impediram de exterminar os curdos iraquianos. Quem quiser confiar na ONU que confie. De minha parte, perdi as esperanças nela desde os acontecimentos de dez anos atrás em Šrebrenica.
O fato é que nenhuma dessas discussões apaga o que aconteceu. As vítimas estão mortas. Nos resta, neste dia em que o massacre completa dez anos, não deixar que caia no esquecimento. A melhor maneira de não repetir a história é não esquecê-la.
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