Profecia vs Livre-Arbítrio
Via de regra, eu não discuto religião. Primeiro, porque as pessoas têm posições ainda mais arraigadas a respeito do que em matéria de política. Segundo, porque afeta bem menos a vida de todos em geral. Converter ou desconverter meia dúzia de gatos pingados pode ser decisivo para estes, mas a sociedade como um todo quase certamente jamais sentirá os efeitos da crença ou descreça de alguns indivíduos. A menos que sejam eles muito relevantes, mas aí é outra história...
Mas há algo que gosto de fazer de vez em quando: desafiar, para comigo mesmo, alguns conceitos religiosos. E um dos mais interessantes é o que toca a respeito do livre-arbítrio, peça fundamental para quase todas as religiões do mundo moderno, especialmente as monoteístas de cunho salvacionista. Em sua base, elas pregam que o ser humano é totalmente responsável pelo que faz, e por isso merece prêmio ou punição divina pelos atos que pratica. Sem o livre-arbítrio, portanto, a dicotomia céu-inferno simplesmente não faz sentido, e dinamitados estão os pilares fundamentais dos grandes monoteísmos. Num extremo, nem mesmo diferenciar o Bem do Mal faz sentido, já que as coisas não são boas ou más: são o que são porque não podiam ser de outra forma, estavam destinadas àquilo.
No entanto, aspecto curioso, essas mesmas religiões que pregam a liberdade do homem e responsabilidade individual são recheadas de profecias, ou seja, predições do futuro. E aí eu pergunto: a profecia não é uma violação gritante do livre-arbítrio? Ora, se algo pode se previsto é porque não podia ser mudado, aconteceria inexoravelmente daquela forma. E essa obrigatoriedade destrói qualquer idéia de liberdade: mesmo que tentemos evitar, não conseguiremos. O teatro e as epopéias gregas estão recheadas desse conceito estrito de destino: os personagens que tentam fugir dele terminam por ir-lhe ao encontro, como bem mostram Édipo-Rei e a Ilíada, dentre outras.
Há quem diga que as profecias não são destino, são apenas uma predição com base na análise da realidade. Gostaria de lhes avisar que isso tem outro nome: cálculo de probabilidades. Com base na observação empírica se faz uma estimativa da possibilidade de tal evento ocorrer ou não, de acordo com as leis que governam o sistema em estudo. As profecias dos livros sagrados não têm nenhum desses elementos: não demonstram o raciocínio e a metodologia empregadas para chegar à conclusão; os profetas dos livros sagrados não fazem suas profecias após longas elucubrações lógicas: geralmente elas lhes são reveladas em transes e momentos sobrenaturais de contato com a divindade, e os trechos sempre enfatizam que a profecia não é mérito do profeta, ao contrário do cientista que calcula probabilidades. São dádivas concedidas pela divindade, pois “apenas elas conhecem o futuro”, ou “o futuro a Deus pertence”.
Essa última frase torna compreensível o porquê do conceito calvinista da predestinação se tornou tão popular: se Deus conhece o futuro, nós não podemos fazer nada para mudá-lo; ele será como Deus sabe que ele é. Se Deus já conhece nosso futuro, significa dizer que nada do que façamos vai mudá-lo: estamos, quais Édipos modernos, condenados à sorte que nos foi pré-estabelecida. A essa altura, o conceito de livre-arbítrio e responsabilidade individual foi para a cucuia.
Daí migrarmos para outro pensamento, radicalmente oposto, expressado na frase de Sartre que se tornou epíteto do Existencialismo: “a humanidade está condenada a ser livre”. Sem Deus onisciente para conhecer nosso futuro, resta-nos a tarefa de fazê-lo por nós mesmos, totalmente sem ajuda. Se não há desígnios inteligentes controlando o mundo, tudo que nós fazemos diz respeito somente a nós, daí a liberdade estar inapelavelmente ligada à responsabilidade. Somos os únicos responsáveis por nossos atos.
Um fundamentalista respondeu às minhas colocações contando a seguinte anedota, que, segundo ele, prova que é possível conciliar a onisciência com o livre-arbítrio: “você vê um cego ao longe, caminhando rumo ao precipício. Você sabe que ele vai cair, mas ainda assim você grita, avisando-o do perigo iminente”. O raciocínio, obviamente, é ridículo: se eu grito para o cego, é porque tenho esperança de que ele me escute e corrija a trajetória; ou seja, como não conheço o futuro, tento mudar o curso do acontecimento, fazendo com que o cego saia da trajetória perigosa. Se eu sou perfeitamente onisciente e sei que ele vai cair, para que gritar? Se sei que meu grito será em vão...
Em seguida ele emendou a história e conseguiu torná-la ainda mais caricata: “imagine que o sujeito, além de cego, é sudo”. Bom, nesse caso eu sei que nada posso fazer por ele. Então, se por um lado sou onisciente, por outro sou completamente impotente; tenho plena consciência de que nada que eu faça vai mudar aquela situação. Recaímos no conceito de destino, mais uma vez.
Mais do que qualquer leitura ou revolta, o que me fez abandonar a crença em deus foi exatamente essa flagrante contradição. Percebi que um Deus onisciente me torna uma simples marionete na mão de seus desígnios (sendo que ele nem mesmo controle sobre eles tem. Afinal, quem conhece o futuro é totalmente impotente para mudá-lo, a não ser que seja a ele permitido violar a própria onisciência em nome da onipotência), e que um mundo sem a divindade onisciente-onipotente significaria a total liberdade, e que esta se encontra atrelada à responsabilidade. Tudo que eu fizer recairá sobre mim, e, portanto, devo tomar muito cuidado com tudo aquilo que faço, porque sei que os demais também têm essa mesma liberdade. Daí a necessidade de se fazer leis para disciplinar interesses conflitantes. Afinal, se Deus existe e nos pune pelos nossos atos, para quê se fazer a justiça na vida terrena? Deixemos tudo para acertar na outra vida. Assim como a qualquer pessoa de bom senso é absurdo alguém ser punido duas vezes pela mesma falta.
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