A Desgraça Africana: De Quem É a Culpa?
Não é ignorada por ninguém a calamitosa situação humanitária na qual se encontra o continente-mãe da humanidade. Num mundo em que, apesar de todos os problemas, o padrão de vida da maioria dos países cresce em ritmo mais ou menos acelerado, na maioria das nações da África, esse padrão caiu muito nas últimas três décadas, e o fundo do poço parece jamais chegar. Numa recente publicação, a revista científica Science elencou entre as 125 grandes dúvidas da humanidade no momento: por que a pobreza aumentou e a expectativa de vida diminuiu na África subsaariana? Economistas, cientistas sociais e políticos se debruçam sobre a questão e não conseguem uma resposta definitiva. Eu tenho meu palpite, que considero ser correto, se não para todas, pelo menos para a maioria dos países africanos.
Uma coisa dá para afirmar com certeza absoluta: as doações em dinheiro e ajuda humanitária em bens sabotam a economia das nações que as recebem, pelo simples motivo de que a cadeia produtiva nacional perde qualquer utilidade. Para que produzir se vêm de graça? A cada saca de alimento a guisa de ajuda humanitária que chega à África, um agricultor africano perde o emprego. O número de demissões na indústria é harmoniosamente proporcional à quantidade de bens de consumo doados. Ao enviar ajuda estamos ensinando os africanos a serem parasitas e desestimulando o trabalho e o investimento como rota de crescimento econômico para essas nações. Mas não é este o ponto central. Quero fuçar um pouco na história.
A saída simplória é culpar a colonização européia pelo atraso e miséria da África. E como toda saída simplória, é a errada. Várias nações asiáticas foram colonizadas pelas mesmas metrópoles e na mesma época, e hoje apresentam indicadores socioeconômicos muito melhores do que a média africana. Muitos (Tailândia, Malásia e Índia, para citar apenas três) estão crescendo vertiginosamente e elevando na mesma proporção o padrão de vida de seus povos há mais de dez anos. Por que esse boom não se verificou na África?
A culpada, a meu ver, foi a Guerra Fria. Ela também afetou a Ásia, mas de forma intermitente e localizada (tecnicamente, apenas no Vietnã e no Afeganistão). Não fez nascer conflitos novos ou alimentar contendas pré-existentes. Na África, a maioria das nações entrou no jogo da dicotomia de poder que dominava o mundo à época. Várias foram as nações dominadas por regimes marxistas (Congo, Angola, Moçambique, Tanzânia, Etiópia, Líbia), e noutras, Estados Unidos ou União Soviética deram sustentação a caudilhos tribais mais ou menos vinculados a um dos lados. Vamos tomar dois exemplos como estudo de caso: Angola e Botsuana.
Angola era considerada uma das colônias mais ricas da África. Luanda, a principal cidade, era chamada de “Rio de Janeiro africano”, pela beleza de sua orla marítima e da arquitetura colonial. A partir dos anos 60, a URSS passou a financiar uma guerrilha marxista o MPLA (Movimento Pela Libertação de Angola). Como Portugal conseguia manter o controle de sua colônia, os americanos, já complicados no Vietnã, preferiram não se meter na questão. Eis que a guerrilha se intensifica, e ao mesmo tempo, cai a ditadura salazarista em Portugal. O novo governo, de inspiração socialista, resolveu fazer a desgraça de Angola: entregou-a de mão beijada aos comunistas do MPLA. Os portugueses residentes na colônia foram embora, levando capitais e know-how tecnológico e administrativo. Como guerrilheiros que eram, os integrantes do MPLA não tinham nenhuma capacidade nem projeto para guiar o país. Uma parte da sociedade angolana, insatisfeita com o governo marxista, criou a UNITA, que encontrou nos EUA, já retirados do sudeste asiático, um financiador. A Guerra fria acabou, mas a guerrilha angolana continuou. Era a única realidade política que o país vivenciava. O petróleo financiava o MPLA, e os diamantes, a UNITA. Trinta anos de governo marxista por si só já são devastadores, com guerrilha então, nem se fala: Angola hoje é uma das nações mais pobres do mundo. A outrora charmosa capital não passa de uma enorme favela a beira-mar. As minas terrestres são o único legado concreto que a independência deixou à nação.
Botsuana, país vizinho, teve sorte diversa. A independência não foi feita na marra, com guerrilhas e contraguerrilhas. Mesmo com a independência, os ingleses residentes permaneceram, e com seus capitais e conhecimento, fizeram a economia continuar andando. As leis de segregação racial foram sendo revogadas paulatinamente. A AIDS surgiu como praga e afeta um terço da população adulta do país, mas nem essa calamidade foi capaz de deter a economia da nação: Botsuana tem renda per capita 50% maior que a brasileira, e à exceção da expectativa de vida, brutalmente diminuída em decorrência da epidemia, todos os seus indicadores sociais são melhores que os nossos. Gabonore, a capital, é uma cidade bela, moderna, encravada no coração da savana africana. Sem a Guerra Fria para atrapalhar, Botsuana conseguiu, na medida do possível, manter um padrão de vida razoável.
Nem todas as nações saíram ricas da tutela de suas metrópoles. Algumas sempre foram pobres mesmo, como as da orla do Saara. Mas creio que em pelo menos três quartos dos países africanos, a guerra fria ou a ascensão de governos nacionalistas ou tribais que expulsaram os colonizadores são os principais fatores de atraso. A história mostra com clareza que todas as nações que se tornam independentes banindo seus colonizadores se estrepam. Aqui na América, o único modelo de descolonização com banimento dos colonizadores foi o Haiti, que em duzentos anos deixou de ser a colônia mais rica do mundo para ser a nação mais pobre do Ocidente. Aonde os colonizadores saíram de repente e ninguém foi preparado para assumir o poder, houve a proliferação de guerras tribais e regimes autoritários de legitimidade duvidosa.
A maneira como foi feito o processo de descolonização da África, moldada pela Guerra Fria, desgraçou o continente negro. Sem essa nefasta influência, a África estaria bem parecida com o sudeste asiático hoje. Algumas nações prosperando (Tailândia, Malásia, Índia, Vietnã, Cingapura, Bangladesh, Sri Lanka) e outras congeladas (Myanmar, Laos, Paquistão, Nepal, Camboja). Só não acredito que os índices de qualidade de vida de grande parte do continente decaíssem de forma tão vertiginosa, como terminou acontecendo.
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