sábado, setembro 17, 2005

Como pude ser tão cego?


Não se iludam. Os cegos, quanto mais a bandagem da escuridão física, psíquica ou ideológica envolve seus olhos, mais acreditam enxergar. Divisam miríades de luzes e matizes de cores que só existem no seu desejo de vê-las. Vez ou outra, a alguns privilegiados (?) ocorre de tais miragens esfumaçarem e um amplo horizonte embebido em doses cavalares do tônico opressor da realidade se descortinar em sua frente. Tão acostumados estão os olhos à confortável escuridão da cegueira plena de certezas que a princípio tudo parece ofuscante e embaçado. Apenas habituando a visão a todos os estímulos se pode começar a tatear com segurança no mundo real.

Essa transição brusca e violenta aconteceu comigo. Houve um tempo em que fui um cego confortável à escuridão de certezas indevassáveis, cuja cegueira eu creditava ao excesso da luz da verdade que era focada em meus olhos. Houve o momento, no entanto, em que me foi dada a chance de ver, num relance, o mundo real, e desde então não faço outra coisa além de explorá-lo, malgrado minha miopia de retina e, por vezes, de intelecto. Retirei de meus olhos duas vendas poderosas, a religião e o socialismo, e consciente de que esse é um feito que muito poucos logram atingir, cheguei a afirmar, deterministicamente, que jamais deixaria de ver as coisas como elas realmente são. Conseguira retirar as maiores vendas já criadas pela humanidade, não seria outra menor que interpor-se-ia entre minha visão e o mundo.

Quão tolo se é quando se arroga a certeza de não se deixar enlevar pelas certezas! A Fortuna*, qual um Heisenberg** diluindo em aleatoriedades um castelo sólido de convicções deterministas, encarregou-se de me mostrar o quão anti-cético meu ceticismo havia me tornado. Tratou de me mostrar a venda mais forte que foi inventada pelas artes do intelecto e da emoção de nossa espécie. Não foi a primeira vez que amei. Mas nunca havia me deixado cegar dessa forma. Não há estratagemas intelectuais, engodos ideológicos ou apelos emocionais subliminares que se equiparem à capacidade das emanações físicas e psíquicas da paixão em tirar-nos a capacidade de perceber o óbvio. Nada como o enlevo de belas palavras, o sussurro de confissões ofegantes ou a reminiscência do frescor de cheiros, do calor de abraços ou da maciez de beijos para levar mesmo o mais empedernido racional a considerar saúde a ardência febril da passionalidade, a sentir frêmitos e palpitações indescritíveis e irrepetíveis como sendo parte integrante e indispensável de seu ser.

Foi muito tempo de cegueira. Dias a fio nos quais a verdade se mostrou às escancaras e eu simplesmente não pude percebê-la. Mesmo quando em relances e soslaios eu conseguia percebê-la, deixava-me arrastar por qualquer brisa de palavras ou gestos para o plasma mareado e confuso que eu denominava verdade. Pessoas que sempre me elogiaram pela perspicácia com a qual sempre pude notar o que se passava melhor que elas mesmas, foram essas pessoas que tentaram reconvocar o febril à tepidez segura da realidade. Nem mesmo depois que ela própria parou de enviar sinais que pudessem me confundir eu quis acreditar que o mundo que eu construíra, e que se me afigurava tão sólido, havia sido arrastado pela primeira brisa, vinda de direção ainda para mim desconhecida.

Mas caiu. Caiu o mundo frágil que eu imaginara ser tão sólido. Caiu finalmente a venda de meus olhos, depois que ninguém mais fizera questão de sustentá-la e eu mesmo desistira de mantê-la por pura birra com o mundo. Caíra mais uma certeza que eu acreditara inexpugnável, e que na verdade era tão frágil que nem mesmo uma ventania foi necessária para derrubá-la. Aos olhos terrivelmente lúcidos com os quais contemplo agora o que restou, percebo que só mesmo alguém muito cego poderia continuar acreditando que tudo aquilo ainda estava de pé enquanto desabava sobre sua própria cabeça.

Ao menos algo me consola: não a construí sozinho. Tive a ajuda dela, às vezes diligente, noutras vacilante, mas sempre constante ajuda dela em erigir aquilo que eu (não sei ela) acreditava ser uma fortaleza quase inexpugnável (ainda havia humildade para incluir um “quase”). Quando começou a cair, ela me fez crer que nada caía. E mesmo sentindo desabar sobre mim, acreditei piamente que a estrutura apenas rangia, que não tão facilmente ruiria. E ainda quando ela própria abandonara o edifício construído à sua própria desgraçada e inevitável sorte, eu continuei repetindo e apregoando que nada caía, que tudo estava no lugar. A essa altura, ninguém mais se esforçava em mantê-la, e não foram poucos os que tentaram me avisar do desastre em iminente consumação. Não os pude ouvir até que uma vaga de razão desvendou-me a miragem na qual tentava me abrigar. Agora, do lado de fora, vejo-a débil, a lamentar nos estalidos sua prolongada agonia. Creio estar sereno o suficiente para ver tudo cair de uma vez. E talvez volte às ruínas para tentar salvar o que restou. Se é que algo restou.

*Para maiores informações, ouçam Carmina Burana, de Carl Orff

**Físico alemão que, em 1927, aboliu o determinismo clássico em favor de uma aleatoriedade intrínseca nos processos naturais.


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