Dublin & Teresina: Semelhanças & Diferenças
Em 1876, Georgie, um jovem de vinte anos, deixava Dublin, desiludido com o provincianismo conservador da capital irlandesa, e partia para Londres, onde esperava obter o reconhecimento que sua cidade natal não podia a ele possibilitar.Nas décadas seguintes, Georgie colecionaria alguns fracassos, mas seu talento terminou por prevalecer: foi reconhecido por todos de seu tempo como um dos melhores no que fazia, recebendo inclusive um Prêmio Nobel.Mas renegou todos os prêmios que sua cidade e seu país a ele concederam, até morrer na provecta proximidade dos cem anos de vida.
Fica claro de quem eu estou falando: do dramaturgo irlandês George Bernard Shaw, cuja memória irreverente me permitiu tratar pelo diminutivo.Ele saiu de Dublin por tê-la considerado uma cidade provinciana e atrasada, que jamais poderia reconhecer o seu talento, e partiu para o centro não só do Império Britânico, mas do mundo na época: a capital às margens do Tamisa.Com um senso de megalomania que por vezes me ataca, comparei um pouco (só um pouco!) a minha situação com a dele.Também tenho vinte anos de idade, também vivo em uma cidade provinciana e com povo de pensamento pequeno, e tenho certeza que, se tenho mesmo talento suficiente para me destacar nas letras, não será aqui que ele receberá o devido reconhecimento.
A Dublin do final do século XIX e Teresina, a cidade onde vivo, guardam impressionantes semelhanças: ambas eram (no caso de Teresina, tudo que eu falar de Dublin no passado deve ser aplicado no tempo presente) capitais das regiões mais pobres de seus países, com um povo de mente pequena contaminado pelo catolicismo, alternando para com os habitantes das regiões mais desenvolvidas um sentimento que ia do ressentimento vitimista à mais abjeta subserviência.E ambas são banhadas por um rio, no caso de Teresina, por dois: o Parnaíba e o Poti.Então ambas são semelhantes em tudo por tudo?
Chegamos precisamente ao momento em que a generalização, depois de se prestar a um papel útil, começa a ser prejudicial, conduzindo a uma polarização de visão.Existem diferenças cruciais entre ambas, já a Dublin do século XIX mantinha diferenças impactantes em relação à capital piauiense na alvorada do terceiro milênio.Dois séculos antes havia dado à língua inglesa Jonathan Swift, autor de As viagens de Gulliver.Nas margens do rio Liffy passeava aquele que uma década mais tarde escandalizaria a sociedade vitoriana com suas excentricidades e seu talento extravagante: Oscar Wilde.Há exatos cem anos, se desenrolava em seus logradouros a ação de Ulisses, de James Joyce, o romance moderno por excelência.Em 1906 nascia outro dramaturgo de escol: Samuel Beckett.Logo após a Primeira Guerra, Michael Collins, em sua bicicleta, espalhava o terror entre os funcionários ingleses que administravam o país.
E em Teresina? Bom, o máximo que conseguiu produzir em literatura é representado por dois homens que foram embora daqui assim que puderam, e que, supremo infortúnio, terminariam morrendo jovens, ainda longe de atingirem o auge de seu talento criador: Mário Faustino e Torquato Neto.As ruas e praças dessa cidade não serviram de palco para nenhum romance relevante sequer para os fracos padrões da literatura brasileira, que dirá fundamental para a literatura universal como foi o clássico de Joyce.Passear nas margens do Parnaíba e do Poti? Só se seu objetivo for apreciar a bela vista dos aguapés que recobrem as águas infectas desses poluidíssimos rios, ou doar compulsoriamente seu relógio, sua carteira e seu celular para um trombadinha qualquer trocar por maconha ou cola de sapateiro.Nem mesmo temos a honra de termos inaugurado o terrorismo moderno, como Michael Collins e o IRA fizeram nos anos vinte.
Tudo bem pesado, eu acho que já sei o que falaria a Bernard Shaw, caso pudesse.Olhando para as suas vetustas e longuíssimas barbas brancas, eu diria:
—Ah, Georgie, quem me dera viver em um buraco como Dublin!
(Texto escrito no meu primeiro blog, no ano passado)
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