Explicando rapidamente a situação para quem não é daqui e não acompanhou o imbróglio: a arqueóloga Niède Guidon, presidente da Fundação Museu do Homem Americano (Fundham) deu uma entrevista para a TV Câmara (cujo sinal é retransmitido pela TV Assembléia local). Depois de muito falar sobre o trabalho na área e outras coisas mais, interpelaram-na sobre política e ela disse o que até as pedras do Parque Nacional da Serra da Capivara sabem: que os governos estadual e federal prometeram um aeroporto internacional para São Raimundo Nonato em 2003, com prazo para entrega em 2005. Quatro anos e mais de 20 milhões de reais depois, o aeroporto se resume a uma enorme pista de terra batida cercada de caatinga por todos os lados.
Claro que os apparatchiks petistas que mandam no estado depois de terem comprado toda a oposição (inclusive aqueles que eles criticaram por duas décadas) não engoliriam uma insubmissão dessas. A arqueóloga foi convocada para "se explicar" na Assembléia Legislativa, e foi submetida a uma verdadeira inquisição. João de Deus "Torquemada" (PT) e Xavier Neto "Vichinski" (PR) acusaram-na de ter má fé e o objetivo de prejudicar o estado, adotando a velha tática leninista de acusar os outros de fazer o que eles próprios fazem.
Agora chega o momento da reflexão: quando uma cidadã comum é interrogada por dar opiniões, sabemos que a democracia está se corroendo e o autoritarismo se fortalecendo. Em qualquer democracia que faça jus a tal designação, uma pessoa só pode ser convocada a se explicar caso seja suspeita de autoria ou cumplicidade em algum crime, ou testemunha do mesmo. Mas Niède também errou ao comparecer. Deveria ter passado uma descompostura no NKVD governista e lembrado que enquanto cidadã ela jamais se veria na obrigação de ter que explicar opiniões e pontos de vista pessoais. Ela não disse que havia corrupção, apenas incompetência e má gestão, e nem mesmo atribuiu estas a pessoas ou instituições específicas. Falou o que todos nós falamos todos os dias nas mesas de bar, na cozinha durante o almoço e em conversas com os amigos. E foi convocada a se explicar e "provar" o que estava dizendo. Aqui chegamos ao cúmulo: a Gestapo do governador Wellington Dias e seu reichsführer João de Deus estabeleceram o princípio segundo o qual o cidadão precisa provar que é inocente, e não os poderes constituídos provarem que ele incorreu em alguma falta.
Que tal se o governo parasse de acusá-la e de nos inundar todos os dias com propaganda mentirosa e resolvesse cuidar dos nossos sítios arqueológicos? Muitos piauienses não sabem, mas o nosso estado é cheio de sítios com pinturas rupestres. Só na região de Castelo do Piauí, que conheço bem por minha família ser de lá, há vários locais com inscrições e vestígios arqueológicos. Centenas de outros estão espalhados pelos quatro cantos desse estado. E todo esse patrimônio está abandonado, sem proteção alguma, à mercê das intempéries naturais e da ignorância e do vandalismo humanos, e ninguém toma providência alguma. Quantos sítios de importância crucial para se definir quando começou o povoamento do continente americano já devem ter sido perdidos? Nem os especialistas da Fundham fazem idéia.
Do jeito que as coisas vão indo daqui a pouco o governador Wellington Dias coloca uma túnica púrpura, uma coroa e um cetro, se auto-intitula Imperador Wellington I e constrói um pelourinho na frente do palácio de Karnak, sede do governo estadual, onde todos aqueles que ousaram falar mal de sua excelsa majestade serão amarrados no troncho e receberão trinta chibatadas. Tendo comprado toda a oposição local e sendo aliado do empresário mais rico do estado, o poder dele é quase absoluto. Se depois de publicar esse post eu for convocado à delegacia do meu bairro para "prestar esclarecimentos", não se surpreendam. Eu me darei por satisfeito de não terminar no pau de arara.
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