Série Reconstituições Históricas: E se... Stalin não tivesse sucedido Lenin?
Após muito tempo sem dar as caras por aqui, a série Reconstituições Históricas está de volta, abordando mais um momento crucial na história do século recém-finado: O que teria sido diferente se Stalin não tivesse sucedido Lenin?
Antes de mais nada, é bom remover um mito constantemente pregado por trotskistas-leninistas (seja lá o que isso signifique), de que Lenin era o herói bonzinho e Stalin perverteu a humanitária e democrática herança do socialismo leninista. Qualquer um que tenha conhecimento histórico e honestidade intelectual sabe que todo o aparato repressor com o qual Stalin aterrorizaria a população soviética nos anos 30 foi montado ainda na gestão leninista: a polícia política (Tcheka) e os campos de concentração (Gulag), e ainda os mesmos métodos (extermínio de opositores, utilização da fome como arma para dobrar as resistências dos camponeses às políticas governamentais... Tudo isso foi criado ainda na gestão de Lenin, que era qualquer coisa menos democrata e humano.
No entanto, havia uma diferença sensível de índole entre os dois. Lenin não era um fanático psicopata como Stalin, tampouco sofria de suas esquizofrênicas manias de perseguição, que o levariam a chacinar milhares de partidários do comunismo e quase toda a velha guarda da revolução no grande expurgo de 1935-1938. Lenin era, sobretudo, um pragmático: em prol da causa que defendia, faria qualquer vileza, mas jamais cometeria crimes por pura satisfação sádica ou por paranóia.
O melhor exemplo disso é o NEP, a reforma econômica com incentivos capitalistas que ele implantou para tentar animar a economia destroçada pelo "Comunismo de Guerra" trotskista. Lenin sabia que, por mais que repetisse as bazófias comunistas em palanque, a revolução não duraria se as pessoas não tivessem a impressão de que a vida estava melhorando. O NEP cumpriu essa tarefa: ao dar um alento a uma economia devastada por quase dez anos de guerra continuada e medidas comunistas puro-sangue, fez o povo acreditar que havia esperança de prosperidade pela frente.
Não há motivos para acreditar que ele mexesse em time que estava ganhando. Lenin deu inúmeras provas de que colocava o senso prático acima das convicções ideológicas. Trotski, como crítico ácido do NEP, não o teria sucedido, como muitos inocentemente acreditam, mas também não teria sido perseguido de forma tão implacável como o foi por Stalin. Terminaria por deixar a URSS, mas de forma pacífica. Poderia sair pelo mundo propagando a "Revolução Continuada" que tanto pregava, mas considerando-se que não o fez na vida real, não há como supor que o teria feito na ficção. Aposto que passaria o resto de seus dias num confortável exílio em algum país capitalista avançado. Teria lá sua parcela de admiradores, mas como não seria assassinado, não seria o mártir que foi, e ainda é, para alguns.
O sucessor de Lenin seria alguém parecido com ele: pragmático e favorável ao NEP (aposto em Bukhárin, que ao contrário de muitos participantes da revolução, era inteligente). Com a ameaça constante das potências ocidentais e o manto do fascismo a se estender pela Europa, tal sucessor se veria estimulado a impulsionar e ampliar o NEP como forma de acelerar o progresso soviético, de modo a fazer frente a quaisquer ameaças que viessem do Ocidente. Resultado: meio século antes de Deng Xiaoping, o mundo teria visto o que hoje conhecemos como Modelo Comunista Chinês: crescente liberalização econômica e manutenção da repressão política.
Sabe-se, por análise dos documentos que precederam a invasão à Rússia, que Hitler só se encorajou a invadir a União Soviética por saber que o exército vermelho estava desfigurado pelo expurgo dos melhores oficiais promovido por Stalin em 1937. Não há razões para acreditar que tal expurgo houvesse acontecido sem ele, e com o crescimento econômico gerado pelo NEP continuado e ampliado, a URSS passaria a impressão de ser uma grande força, desencorajando o ataque nazista. A Alemanha teria ido à guerra, de toda forma, mas apenas contra as potências ocidentais e alguns países do leste europeu com os quais fizesse fronteira. Os soviéticos teriam participado da guerra de qualquer forma, mas na mesma posição dos Estados Unidos: apenas para ajudar a destruir um regime que lhe era claramente hostil, sem jamais ter sido invadida. A Segunda Guerra teria tido um impacto bem menos devastador em perdas econômicas e humanas, uma vez que Hitler não teria conseguido pôr as garras na comunidade judaica soviética, que era a maior da Europa. Nomes como Babi Yar e Stalingrado seriam completamente estranhos à Grande História.
Quanto tempo duraria a dicotomia liberdade econômica-repressão política? Isso ainda não dá para saber, uma vez que a experiência chinesa se encontra em pleno transcurso. Mas não dá para ser assim eternamente. As pessoas só não se importam com liberdade política enquanto estão preocupadas demais em conseguir o prato do dia. Enquanto a população soviética fosse pobre o suficiente para ficar inebriada com o progresso econômico, o modelo se sustentaria. A partir do momento em que já tivesse comida, ia querer diversão e arte (parafraseando os Titãs).
O "comunismo" não desabaria de podre da forma espetacular como aconteceu. Ao contrário, seria gradualmente desvirtuado até virar algo como a monarquia inglesa: puro enfeite sem qualquer efeito prático. Claro que revoluções comunistas teriam acontecido mundo afora, mas a URSS não financiaria tantos regimes como o fez. Fidel Castro seria um ilustre anônimo, e Che Guevara apenas mais um guerrilheiro sem nome que morreu numa das muitas tentativas frustradas de se fazer revolução. Sem comunismo em Cuba, a maioria das ditaduras militares latino-americanas não teria chegado ao poder e nele ficado tanto tempo. Talvez a América Latina já tivesse alguns "Tigres", devido à liberdade econômica e proximidade com os EUA. Assim como a Alemanha jamais teria sido dividida e o Muro de Berlim também não teria existido.
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