A que ponto ainda haveremos de chegar...
Neste momento em que a missionária Dorothy Stang está prestes a virar nome de rua, quem há de se lembrar de Luiz Pereira da Silva? Eu mesmo, confesso, pouco sei a respeito de sua morte além do fato de ter sido barbaramente torturado e assassinado num acampamento do MST. Reinaldo Azevedo apresenta-nos este cidadão anônimo imolado no altar do maoísmo sacrossanto dos bandoleiros do campo:
Silva, um morto sem sepultura
por Reinaldo Azevedo em 15 de fevereiro de 2005
Resumo: Luiz Pereira da Silva era o policial da boa gente pernambucana, um Silva que não fez direito a lição de casa, tornado prisioneiro, torturado e assassinado num assentamento do MST.
Quantos Luiz Pereira da Silva vale uma Dorothy Stang? Como? Você não se lembra, leitor, de Luiz Pereira da Silva? Não o condeno por isso. Ninguém dá bola para um Silva no Brasil, a menos que ele seja adotado pela patrulha politicamente correta, torne-se um burguês sem capital, reproduza o sistema de exclusão que jurou combater e se torne um cronista das injustiças brasileiras, admitido nos salões requintados para exibir o seu humor rombudo.
É verdade, leitor, a mídia também deu pouco destaque a Luiz Pereira da Silva e confere ao assassinato de Dorothy Stang dimensões épicas. Ela, não há como ignorar, é a missionária americana assassinada em Anapu, no Pará, por pistoleiros que estavam a serviço, tudo indica, de grileiros de terra. Um evento sem dúvida bárbaro, que merece o repúdio de que está sendo objeto no Brasil e no mundo. Faz bem o jornalismo brasileiro em se interessar pela questão. Está correto o presidente Luiz Inácio Lula Incluído da Silva ao mobilizar três ministros de Estado para prantear a sua morte e buscar os culpados. Que esse crime não fique impune e que seus autores e mandantes sejam trancafiados. Mas e quanto a Luiz Pereira da Silva?
Ninguém assistiu ao nada formidável enterro de Silva. Ninguém foi regar o seu cadáver na esperança de que estivesse fertilizando uma causa. O Estado brasileiro, por meio do governo, grita seu silêncio cúmplice e covarde diante de seu corpo. Ele não é nada. Ele não adula as culpas dos intelectuais incluídos de esquerda que pretendem teleguiar o movimento de libertação dos oprimidos a partir da universidade; ele não serve à estranha escatologia de Dom Tomás Balduino, este impressionante bispo que responsabiliza o agronegócio pela morte da religiosa; ele não serve à maior empresa jamais criada de produtos ideológicos no país chamada MST; seu corpo não se presta à mística da luta do Bem contra o mal; de seu cadáver seco das lágrimas das ONGs, das lágrimas dos povos da floresta, das lágrimas de Lula, das lágrimas de Miguel Rossetto, ministro da Reforma Agrária, das lágrimas de Márcio Thomaz Bastos, ministro da Justiça, das lágrimas de Marina Silva, ministra do Meio Ambiente, de seu cadáver seco, enfim, não brota a epifania pagã, não se constroem ideologias finalistas, não se vislumbra o fim dos tempos, não se promove o julgamento dos vivos e dos mortos.
Luiz Pereira da Silva é um morto sem sepultura; Luiz Pereira da Silva é um morto de quinta categoria; Luiz Pereira da Silva confunde as afinidades eletivas dos demagogos brasileiros; Luiz Pereira da Silva pertence àquela estranha categoria de homens que, por mais que sofram, jamais vão se tornar mártires de coisa nenhuma; Luiz Pereira da Silva era pobre demais, desimportante demais, vulgar demais até para ser oferecido em holocausto no altar de fantasmagorias de dom Balduíno; Luiz Pereira da Silva não serve como cordeiro do Deus justiceiro do MST.
Sim, para quem ainda não sabe, é chegada a hora de dizer quem era Luiz Pereira da Silva, doravante agora só conjugado o verbo no passado: “era”, pretérito imperfeito, verbo interrompido pela “luta” dos oprimidos de carteirinha convertidos em assassinos impunes e incensados pelo Estado. Fez-se um “não ser”. Luiz Pereira da Silva era o policial da boa gente pernambucana, um Silva que não fez direito a lição de casa, tornado prisioneiro, torturado e assassinado num assentamento do MST. O episódio se deu no dia 5 de fevereiro na cidade de Quipapá, em Pernambuco.
Outro Silva, Cícero Jacinto, também vítima de tortura, foi feito refém por algumas horas. Ambos estavam no encalço de um assentado convertido em bandido comum. Lula não disse nada. Nilmário Miranda não disse nada. Márcio Thomaz Bastos não disse nada. Miguel Rossetto não disse nada. A própria imprensa não disse quase nada. Dorothy Stang, ao menos, é um ser que se conjuga no futuro. Seu corpo pranteado frutificará. De Silva, dentro em breve, não terá restado senão a memória privada de sua família, uma gente a que também não se dá muita importância. Um dia vai sumir. Historiadores ainda hão de incluir Dorothy Stang no capítulo do que chamam, com aquele vitimismo do triunfo que lhes é bem típico, a “história dos vencidos”. Já o Silva, coitado!, terá sumido na poeira dos tempos: pobre demais para que os “vencedores” se importem com ele; demasiadamente humano para que os vencidos oficiais o transformem em símbolo.
E não me venham acusar de cínico ou impiedoso pela pergunta que abre este texto. A contabilidade macabra não é minha, mas do governo Lula. Quem discrimina cadáveres, atribuindo a uns a santidade política e a outros o desprezo covarde, é o Planalto, não eu. Qualquer morte, reza aquele clichê, belo e profundo ainda assim, nos diminui. A cada uma, é por nós, sem dúvida, que os sinos dobram. A despeito disso, vejo-me compelido a escrever: a do soldado Silva evidencia com mais agudeza alguns riscos que corremos do que a de Dorothy Stang.
Sintomas
Espero que a polícia encontre os responsáveis pelas mortes do policial e da missionária e que, no segundo caso, também sejam presos os mandantes, se houver. Que a Justiça se encarregue deles e lhes dê a pena máxima admitida pela lei brasileira. Assim como jamais condescendi com causas que justificariam o terrorismo, nada, nada mesmo, justifica o homicídio de quem não pode nem mesmo se defender. Não há considerandos a respeito. A questão é absoluta. Mas as duas mortes, conquanto remetam ao mesmo mal, frutificam de forma diferente.
O mal que às duas mortes tem nome: desídia, incompetência do governo federal, que, por ação e omissão, vê explodir a violência no campo. É por ação quando, sabidamente, órgãos do Ministério do Meio Ambiente e do Ministério do Desenvolvimento Agrário (e o Incra é a prova escancarada disso) se transformam em aparelhos da militância política, renunciando àquela que é sua condição imanente — ser um corpo técnico para arbitrar as disputas segundo o bem comum — para se tornarem agência de um dos lados do conflito.
Há dias, Miguel Rossetto foi aplaudir a inauguração de uma escola superior de invasões criada pelo MST. Ali, ouviu impassível o discurso de líderes que, sem receio, advogaram a invasão também de terras produtivas. Age para estimular a violência no campo um governo que, dispondo de uma lei para coibir invasões, decide, de forma consciente e acintosa, não aplicá-la. E os demais Poderes e instâncias da República, a começar pela Justiça e pelo Ministério Público, se calam. Age para estimular a violência no campo um governo que, pela boca de seu ministro da Justiça, prega a acomodação tática da Constituição diante dos abusos óbvios do MST.
Omite-se o governo — e, portanto, estimula a violência no campo — quando permite que, ao arrepio de qualquer controle ou acompanhamento responsável, a questão fundiária se transforme em objeto de disputas de organizações não-governamentais e grupos de pressão que põem seus preconceitos e idiossincrasias acima das necessidades econômicas das comunidades nas quais atuam, elegendo, por critérios que lhes são próprios e alheios a qualquer estratégia pública, os perdedores e os vencedores, satanizando uns, incensando outros, fazendo de uns as bestas do apocalipse e, de outros, os anjos da redenção. Ademais, que se observe: outro cadáver se conta em Anapu: trata-se de Adalberto Xavier Leal, funcionário de um suspeito de ser o mandante da morte da religiosa.
O campo voltou a ser palco de ajuste de contas que estão sendo feitos ao arrepio da polícia e dos poderes constituídos da República. À medida que o Estado brasileiro permite que uma força criminosa promova a indústria de invasões, arma, evidentemente, a mão dos que decidem resistir, que se torna, obviamente, não menos criminosa. A diferença importante é que os mortos de um dos lados desaparecem na poeira do tempo, o que vai acontecer com Leal; os do outro viram mártires. E, nesse caso, é impossível deixar de reconhecer: os mortos tornam-se combustível da causa, fertilizam a terra sangrenta regada com a água benta de alguns bispos e o delírio maoísta de alguns santos do pau oco.
As duas mortes, sem dúvida, envergonham as instituições brasileiras, mas há diferenças, volto ao ponto, que expõem aspectos distintos do mesmo mal. Os assassinos de Dorothy Stang são, sob qualquer ponto de vista, marginais; os assassinos do policial Silva têm o desplante de se dizerem vítimas; os assassinos de Dorothy Stang matam e fogem para o mato, e a polícia terá de caçá-los; os assassinos de Silva, na prática, justificam o seu ato e ainda penduram a conta de sua violência nas costas da sociedade brasileira; os assassinos de Dorothy Stang, com razão, tornam-se párias sociais; os de Silva reivindicam a santidade e o direito à justiça com as próprias mãos como se autodefesa fosse; os assassinos de Dorothy Stang praticam o ato nefando correndo, vá lá, os riscos e por empreitada privada; os assassinos de Silva, na prática, são financiados pelo poder público e sabem que não correm nenhum risco ou perigo; os assassinos de Dorothy Stang não merecem nenhuma consideração ou não têm nenhuma circunstância que atenue o horror praticado — e isso está certo; os assassinos de Silva reivindicam uma inocência inata que explica qualquer horror — e isso está errado.
E há mais: Dorothy Stang, é preciso reconhecer, estava numa luta cujos riscos não ignorava. Movia-se naquele espaço da militância que, sabemos todos, é obrigada a flertar com as franjas da ilegalidade, aonde o Estado ou ainda não chegou ou, como é o caso, por incompetência e decisão do governo, jamais chegará. Sua morte agride qualquer princípio da civilidade e da necessária tolerância, jamais se duvide. Mas, entendo, rebaixa menos a República do que o assassinato daquele policial. Enquanto os Silva, já sabidamente policiais, estavam sendo submetidos à tortura, era o Estado brasileiro que se fazia refém de um grupo que aplica suas próprias leis e tem sua própria compreensão do que seja a justiça.
A morte de Dorothy Stang é a prova de um Estado inepto, ausente e incapaz. A morte de Silva é a prova de um Estado contaminado, conspurcado, seqüestrado, feito ele também refém de alguns grupos de pressão. Quando o corpo de Dorothy Stang tombou, levantava-se justamente a indignação nacional. Quando o corpo de Silva tombou, armou-se apenas o silêncio pusilânime do governo, da mídia e das ONGs.
Tanto o silêncio, num caso, como o alarde, no outro, são sintomas evidentes de que, a essas mortes, outras se seguirão. Um dos corpos, o de Silva, já foi esquecido. O outro, o de Dorothy, é um cadáver que procria, é um cadáver que alimenta a causa, é um cadáver, no fim das contas, útil, é um cadáver cujo sentido é gerar outros cadáveres para que, do acúmulo de mortes e mártires, brote a pátria dos sonhos, que é puro horror, de certos grupos que hoje encabrestam a República.
Não pensem que, à feição do governo, também eu lamente mais uma morte do que outra. Não! Tenho a ambição de ter vergonha na cara. Considero indecente, essencialmente imoral, estabelecer o preço político de uma vida, seja para endeusar os mortos, seja para ignorá-los, justificando, tanto em um caso como no outro, a violência dos vivos.
Publicado por Primera Leitura. Disponível em http://www.midiasemmascara.com.br/artigo.php?sid=3338
Agora, uma perguntinha que não quer calar: se a Globo é mesmo a ignominiosa encarnação da direita (???) tupiniquim, por que diabos ela foi a principal arquiteta do endeusamento da morte da freira e do esquecimento da morte do policial? Perguntas que os conspiracionistas da esquerda nunca conseguiram me responder...
Silva, um morto sem sepultura
por Reinaldo Azevedo em 15 de fevereiro de 2005
Resumo: Luiz Pereira da Silva era o policial da boa gente pernambucana, um Silva que não fez direito a lição de casa, tornado prisioneiro, torturado e assassinado num assentamento do MST.
Quantos Luiz Pereira da Silva vale uma Dorothy Stang? Como? Você não se lembra, leitor, de Luiz Pereira da Silva? Não o condeno por isso. Ninguém dá bola para um Silva no Brasil, a menos que ele seja adotado pela patrulha politicamente correta, torne-se um burguês sem capital, reproduza o sistema de exclusão que jurou combater e se torne um cronista das injustiças brasileiras, admitido nos salões requintados para exibir o seu humor rombudo.
É verdade, leitor, a mídia também deu pouco destaque a Luiz Pereira da Silva e confere ao assassinato de Dorothy Stang dimensões épicas. Ela, não há como ignorar, é a missionária americana assassinada em Anapu, no Pará, por pistoleiros que estavam a serviço, tudo indica, de grileiros de terra. Um evento sem dúvida bárbaro, que merece o repúdio de que está sendo objeto no Brasil e no mundo. Faz bem o jornalismo brasileiro em se interessar pela questão. Está correto o presidente Luiz Inácio Lula Incluído da Silva ao mobilizar três ministros de Estado para prantear a sua morte e buscar os culpados. Que esse crime não fique impune e que seus autores e mandantes sejam trancafiados. Mas e quanto a Luiz Pereira da Silva?
Ninguém assistiu ao nada formidável enterro de Silva. Ninguém foi regar o seu cadáver na esperança de que estivesse fertilizando uma causa. O Estado brasileiro, por meio do governo, grita seu silêncio cúmplice e covarde diante de seu corpo. Ele não é nada. Ele não adula as culpas dos intelectuais incluídos de esquerda que pretendem teleguiar o movimento de libertação dos oprimidos a partir da universidade; ele não serve à estranha escatologia de Dom Tomás Balduino, este impressionante bispo que responsabiliza o agronegócio pela morte da religiosa; ele não serve à maior empresa jamais criada de produtos ideológicos no país chamada MST; seu corpo não se presta à mística da luta do Bem contra o mal; de seu cadáver seco das lágrimas das ONGs, das lágrimas dos povos da floresta, das lágrimas de Lula, das lágrimas de Miguel Rossetto, ministro da Reforma Agrária, das lágrimas de Márcio Thomaz Bastos, ministro da Justiça, das lágrimas de Marina Silva, ministra do Meio Ambiente, de seu cadáver seco, enfim, não brota a epifania pagã, não se constroem ideologias finalistas, não se vislumbra o fim dos tempos, não se promove o julgamento dos vivos e dos mortos.
Luiz Pereira da Silva é um morto sem sepultura; Luiz Pereira da Silva é um morto de quinta categoria; Luiz Pereira da Silva confunde as afinidades eletivas dos demagogos brasileiros; Luiz Pereira da Silva pertence àquela estranha categoria de homens que, por mais que sofram, jamais vão se tornar mártires de coisa nenhuma; Luiz Pereira da Silva era pobre demais, desimportante demais, vulgar demais até para ser oferecido em holocausto no altar de fantasmagorias de dom Balduíno; Luiz Pereira da Silva não serve como cordeiro do Deus justiceiro do MST.
Sim, para quem ainda não sabe, é chegada a hora de dizer quem era Luiz Pereira da Silva, doravante agora só conjugado o verbo no passado: “era”, pretérito imperfeito, verbo interrompido pela “luta” dos oprimidos de carteirinha convertidos em assassinos impunes e incensados pelo Estado. Fez-se um “não ser”. Luiz Pereira da Silva era o policial da boa gente pernambucana, um Silva que não fez direito a lição de casa, tornado prisioneiro, torturado e assassinado num assentamento do MST. O episódio se deu no dia 5 de fevereiro na cidade de Quipapá, em Pernambuco.
Outro Silva, Cícero Jacinto, também vítima de tortura, foi feito refém por algumas horas. Ambos estavam no encalço de um assentado convertido em bandido comum. Lula não disse nada. Nilmário Miranda não disse nada. Márcio Thomaz Bastos não disse nada. Miguel Rossetto não disse nada. A própria imprensa não disse quase nada. Dorothy Stang, ao menos, é um ser que se conjuga no futuro. Seu corpo pranteado frutificará. De Silva, dentro em breve, não terá restado senão a memória privada de sua família, uma gente a que também não se dá muita importância. Um dia vai sumir. Historiadores ainda hão de incluir Dorothy Stang no capítulo do que chamam, com aquele vitimismo do triunfo que lhes é bem típico, a “história dos vencidos”. Já o Silva, coitado!, terá sumido na poeira dos tempos: pobre demais para que os “vencedores” se importem com ele; demasiadamente humano para que os vencidos oficiais o transformem em símbolo.
E não me venham acusar de cínico ou impiedoso pela pergunta que abre este texto. A contabilidade macabra não é minha, mas do governo Lula. Quem discrimina cadáveres, atribuindo a uns a santidade política e a outros o desprezo covarde, é o Planalto, não eu. Qualquer morte, reza aquele clichê, belo e profundo ainda assim, nos diminui. A cada uma, é por nós, sem dúvida, que os sinos dobram. A despeito disso, vejo-me compelido a escrever: a do soldado Silva evidencia com mais agudeza alguns riscos que corremos do que a de Dorothy Stang.
Sintomas
Espero que a polícia encontre os responsáveis pelas mortes do policial e da missionária e que, no segundo caso, também sejam presos os mandantes, se houver. Que a Justiça se encarregue deles e lhes dê a pena máxima admitida pela lei brasileira. Assim como jamais condescendi com causas que justificariam o terrorismo, nada, nada mesmo, justifica o homicídio de quem não pode nem mesmo se defender. Não há considerandos a respeito. A questão é absoluta. Mas as duas mortes, conquanto remetam ao mesmo mal, frutificam de forma diferente.
O mal que às duas mortes tem nome: desídia, incompetência do governo federal, que, por ação e omissão, vê explodir a violência no campo. É por ação quando, sabidamente, órgãos do Ministério do Meio Ambiente e do Ministério do Desenvolvimento Agrário (e o Incra é a prova escancarada disso) se transformam em aparelhos da militância política, renunciando àquela que é sua condição imanente — ser um corpo técnico para arbitrar as disputas segundo o bem comum — para se tornarem agência de um dos lados do conflito.
Há dias, Miguel Rossetto foi aplaudir a inauguração de uma escola superior de invasões criada pelo MST. Ali, ouviu impassível o discurso de líderes que, sem receio, advogaram a invasão também de terras produtivas. Age para estimular a violência no campo um governo que, dispondo de uma lei para coibir invasões, decide, de forma consciente e acintosa, não aplicá-la. E os demais Poderes e instâncias da República, a começar pela Justiça e pelo Ministério Público, se calam. Age para estimular a violência no campo um governo que, pela boca de seu ministro da Justiça, prega a acomodação tática da Constituição diante dos abusos óbvios do MST.
Omite-se o governo — e, portanto, estimula a violência no campo — quando permite que, ao arrepio de qualquer controle ou acompanhamento responsável, a questão fundiária se transforme em objeto de disputas de organizações não-governamentais e grupos de pressão que põem seus preconceitos e idiossincrasias acima das necessidades econômicas das comunidades nas quais atuam, elegendo, por critérios que lhes são próprios e alheios a qualquer estratégia pública, os perdedores e os vencedores, satanizando uns, incensando outros, fazendo de uns as bestas do apocalipse e, de outros, os anjos da redenção. Ademais, que se observe: outro cadáver se conta em Anapu: trata-se de Adalberto Xavier Leal, funcionário de um suspeito de ser o mandante da morte da religiosa.
O campo voltou a ser palco de ajuste de contas que estão sendo feitos ao arrepio da polícia e dos poderes constituídos da República. À medida que o Estado brasileiro permite que uma força criminosa promova a indústria de invasões, arma, evidentemente, a mão dos que decidem resistir, que se torna, obviamente, não menos criminosa. A diferença importante é que os mortos de um dos lados desaparecem na poeira do tempo, o que vai acontecer com Leal; os do outro viram mártires. E, nesse caso, é impossível deixar de reconhecer: os mortos tornam-se combustível da causa, fertilizam a terra sangrenta regada com a água benta de alguns bispos e o delírio maoísta de alguns santos do pau oco.
As duas mortes, sem dúvida, envergonham as instituições brasileiras, mas há diferenças, volto ao ponto, que expõem aspectos distintos do mesmo mal. Os assassinos de Dorothy Stang são, sob qualquer ponto de vista, marginais; os assassinos do policial Silva têm o desplante de se dizerem vítimas; os assassinos de Dorothy Stang matam e fogem para o mato, e a polícia terá de caçá-los; os assassinos de Silva, na prática, justificam o seu ato e ainda penduram a conta de sua violência nas costas da sociedade brasileira; os assassinos de Dorothy Stang, com razão, tornam-se párias sociais; os de Silva reivindicam a santidade e o direito à justiça com as próprias mãos como se autodefesa fosse; os assassinos de Dorothy Stang praticam o ato nefando correndo, vá lá, os riscos e por empreitada privada; os assassinos de Silva, na prática, são financiados pelo poder público e sabem que não correm nenhum risco ou perigo; os assassinos de Dorothy Stang não merecem nenhuma consideração ou não têm nenhuma circunstância que atenue o horror praticado — e isso está certo; os assassinos de Silva reivindicam uma inocência inata que explica qualquer horror — e isso está errado.
E há mais: Dorothy Stang, é preciso reconhecer, estava numa luta cujos riscos não ignorava. Movia-se naquele espaço da militância que, sabemos todos, é obrigada a flertar com as franjas da ilegalidade, aonde o Estado ou ainda não chegou ou, como é o caso, por incompetência e decisão do governo, jamais chegará. Sua morte agride qualquer princípio da civilidade e da necessária tolerância, jamais se duvide. Mas, entendo, rebaixa menos a República do que o assassinato daquele policial. Enquanto os Silva, já sabidamente policiais, estavam sendo submetidos à tortura, era o Estado brasileiro que se fazia refém de um grupo que aplica suas próprias leis e tem sua própria compreensão do que seja a justiça.
A morte de Dorothy Stang é a prova de um Estado inepto, ausente e incapaz. A morte de Silva é a prova de um Estado contaminado, conspurcado, seqüestrado, feito ele também refém de alguns grupos de pressão. Quando o corpo de Dorothy Stang tombou, levantava-se justamente a indignação nacional. Quando o corpo de Silva tombou, armou-se apenas o silêncio pusilânime do governo, da mídia e das ONGs.
Tanto o silêncio, num caso, como o alarde, no outro, são sintomas evidentes de que, a essas mortes, outras se seguirão. Um dos corpos, o de Silva, já foi esquecido. O outro, o de Dorothy, é um cadáver que procria, é um cadáver que alimenta a causa, é um cadáver, no fim das contas, útil, é um cadáver cujo sentido é gerar outros cadáveres para que, do acúmulo de mortes e mártires, brote a pátria dos sonhos, que é puro horror, de certos grupos que hoje encabrestam a República.
Não pensem que, à feição do governo, também eu lamente mais uma morte do que outra. Não! Tenho a ambição de ter vergonha na cara. Considero indecente, essencialmente imoral, estabelecer o preço político de uma vida, seja para endeusar os mortos, seja para ignorá-los, justificando, tanto em um caso como no outro, a violência dos vivos.
Publicado por Primera Leitura. Disponível em http://www.midiasemmascara.com.br/artigo.php?sid=3338
Agora, uma perguntinha que não quer calar: se a Globo é mesmo a ignominiosa encarnação da direita (???) tupiniquim, por que diabos ela foi a principal arquiteta do endeusamento da morte da freira e do esquecimento da morte do policial? Perguntas que os conspiracionistas da esquerda nunca conseguiram me responder...
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