O jardim dos caminhos que (não) se bifurcam
Os detratores podem ter lá suas ressalvas e críticas, muitas delas até bem fundamentadas, mas não podem negar o fato de que o futebol muitas vezes transcende sua condição de mera disputa esportiva e de fato incorpora elementos políticos, sociológicos, patrióticos, etc.
Teremos uma boa oportunidade de ver dois desses momentos no primeiro semestre desse ano que em breve se inicia. O sorteio das chaves das eliminatórias asiáticas, por capricho do acaso, da providência ou do destino, de acordo com suas convicções pessoais, colocou as duas Coréias no mesmo grupo (os demais integrantes são Turcomenistão e Jordânia, só a título de informação). Serão dois jogos entre elas dentro do grupo: um em Pyongyang e outro em Seul. A do Sul, como em quase tudo, é superior no futebol: foi às últimas seis copas e tem alguns jogadores atuando nos campeonatos mais competitivos do mundo, enquanto os norte-coreanos só foram à Copa de 66, na Inglaterra. Fizeram uma bela campanha, mas desde então jamais voltaram a jogar o maior torneio do futebol. E nos dias que correm, apesar de terem um bom time para os padrões asiáticos, parecem não ter condições de fazer frente à seleção mais bem sucedida do futebol asiático nos últimos tempos.
Mas o que destaca essas partidas não é o futebol, e sim a simbologia. Imagino os sul-coreanos chegando ao imponente estádio Primeiro de Maio, em Pyongyang, oficialmente o maior do mundo hoje, com capacidade para 150 mil pessoas. Bonito e modernoso, o estádio contrasta de forma gritante com a miséria de um país que precisa chantagear as grandes potências para conseguir alimentar mal seu povo. Por dentro deve ser como por fora. Digo deve, porque o governo da Coréia do Norte não permite que se tirem fotos de dentro do estádio. Como pessoas nascidas e crescidas num país rico e democrático enxergarão um retrato de seu próprio povo acuado e amedrontado por aquela que com certeza é a ditadura mais fechada e implacável do planeta? O que sentirão: medo, alívio, pena?
Outro momento interessante será a outra partida, disputada no sul. Como os norte-coreanos encararão, ao transitar pelas ruas de Seul ao chegar e sair do Estádio Olímpico, obviamente cercados por um forte aparato de segurança para impedir defecções, pela janela do ônibus, um país formado pelo mesmo povo, tão parecido e ao mesmo tempo tão abissalmente diferente do deles? Como os habitantes de uma das duas únicas ditaduras de partido único que seguem aferradas aos dogmas marxileninistas verão a imagem especular do seu país, uma democracia capitalista próspera, integrada ao mundo e cuja excelência na qualidade de ensino é referência até mesmo para as grandes potências do ocidente? Que conclusões tirarão acerca de tudo isso?
Em tempo: se passarem pela primeira fase, e tudo indica que passarão, Cuba e Estados Unidos também cairão no mesmo grupo das eliminatórias da Concacaf. Agora que os EUA já tem um calendário futebolístico regular e futebol profissionalizado, quantos atletas da seleção cubana desertarão em prol de tentar a sorte em uma das muitas ligas profissionais e semiprofissionais existentes nos Estados Unidos? Se até esportistas consagrados e mimados pelo regime fogem, que dirá os pobres-coitados que praticam um esporte que a maioria dos cubanos conhece só porque um argentino que era muito bem nele se hospedou no país enquanto tentava se livrar das drogas? Esses sabem que não têm futuro algum ficando em Cuba. Apesar do futebol ainda ser um esporte exótico e, pasmem, um tanto feminino para o americano médio, lá eles terão muito mais chances de ganhar a vida chutando e cabeceando uma bola.
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