Mistérios Insondáveis Da Humanidade
O que vem a significar esse inspirado, lúdico e, por assim dizer, rosajoyceano neologismo que atende pelo epíteto (alcunha é coisa de gentinha) de "bundalelê"?
Num Oceano de dúvidas, sem praias de certeza à vista
O que vem a significar esse inspirado, lúdico e, por assim dizer, rosajoyceano neologismo que atende pelo epíteto (alcunha é coisa de gentinha) de "bundalelê"?
Você é um cristão perfeitamente convicto de suas crenças e praticante de todos os mandamentos deixados por Nosso Senhor Jesus Cristo.Seu melhor amigo também é um modelo de virtude e pureza, uma pessoa que sempre seguiu à risca os mandamentos.Vocês estão em um almoço dominical com suas respectivas famílias, e de repente, você pensa: meu amigo é uma pessoa tão virtuosamente cristã, tão seguidora dos mandamentos das escrituras que certamente irá para o céu quando morrer.E você fica contente.Mas logo uma nuvem negra perpassa pelo seu pensamento: “mas será que ele se preservará virtuoso até o fim da vida? Ainda é jovem, tem décadas de vida pela frente, e pode cair em tentação, afinal todos estamos sujeitos a elas, e então perderá seu lugar no paraíso”.
Neste momento você está quase a chorar de tristeza pela possibilidade que seu grande amigo não conquiste a salvação eterna e vocês não possam reunir suas famílias no paraíso e confraternizar por toda a eternidade, assim como estão fazendo naquele instante.Mas como evitar que ele caia em tentação, é a pergunta que você se faz, cada vez mais desesperado por não obter uma resposta, afinal, por mais que você o aconselhe e reze para que ele não saia do caminho da retidão, nada disso impede que ele porventura resvale para o domínio do pecado.O desespero por não poder evitar uma possível recaída o domina cada vez mais.
E de repente, sua mente se ilumina.Como não havia pensado naquilo antes? A única maneira 100% garantida de impedir que seu amigo peque e perca as graças do paraíso é matá-lo ali mesmo, antes que lhe apareça a oportunidade de ceder à tentação mais cedo ou mais tarde.Como bom cristão que é, você hesita: não é justo privar a família dele de seu convívio.Mas a dúvida logo se dissipa: ele vai para o paraíso, onde viverá eternamente, e em breve esposa e filhos dele estariam em júbilo pelo reencontro definitivo, pois como a vida no paraíso é eterna, não haverá mais separações.E não era o apóstolo Paulo que dizia que “os sofrimentos do presente em nada se comparam com a ventura da vida que me espera após a morte?” Em dentro de algumas décadas, todos estariam reunidos novamente, seria apenas uma separação temporária, para que não corressem o risco de se separarem eternamente, no caso dele debandar para as hostes de Satanás. É preciso, pois, agir rápido!
E rápido você age: pega a faca com a qual estão cortando a picanha do churrasco e a enterra profundamente no coração do seu amigo.Ele geme, se contorce de dor, e como bom cristão que é, você abrevia-lhe o sofrimento: corta a jugular, e em poucos minutos ele jaz no chão, exangue e sem vida.Mas ganhou o paraíso! É o pensamento que o consola, que empresta a mais nobre das causas ao crime que você acaba de cometer.Você livrou o seu amigo da maior de todas as ameaças, a de ir para o inferno de fogo, onde há choro e ranger de dentes.Obviamente, as leis dos homens não compreendem sua ação.E você é preso.
Na cadeia, o desespero o domina, mas agora por outro motivo: seu amigo está salvo, com certeza.Mas, e você? O assassinato é um crime, contraria o Quinto Mandamento.A sua nobilíssima ação de enviar para o céu seu amigo antes que pudesse ele se desviar para o inferno custou a sua própria salvação.Certamente você está condenado ao inferno, certo?
Errado.Como bom cristão que você é, recorda o que Jesus disse: “ama ao teu próximo como a ti mesmo”.E o que foi a sua atitude senão uma demonstração de amor ao próximo? Você se dispôs a sacrificar a própria salvação em prol de garantir a do seu amigo.Você fez aquilo que Jesus fez por toda a humanidade: assim como ele sofreu e morreu para salvar a humanidade, abrir a ela as portas do paraíso que se encontravam vedadas desde Adão, você sacrificou a sua salvação para assegurar a de um amigo, a de outro cristão! Que atitude poderia ser mais nobre, mais cristã, do que imolar a si próprio em benefício dos outros? Como pode Cristo condenar alguém capaz de tamanho ato de desapego a si mesmo? Como ele disse ao jovem rico: “vai, dá tudo o que tens aos pobres e terás um tesouro no céu. Depois, vem e segue-me”.E não foi exatamente isso que você fez? Entregou muito mais do que seus bens, seu sacrifício foi muito maior do que o exigido por Cristo ao jovem.Não entregou apenas seus bens terrenos, mas sim seu bem mais valioso: sua própria salvação.Impossível cumprir mais à risca as ordens de Cristo.Você superou mesmo as melhores expectativas dele em relação aos homens.
Nesse momento, Cristo certamente está com os olhos marejados, embevecido com o gesto de desprendimento e nobreza que você praticou.Nem mesmo seus apóstolos e discípulos mais fiéis sacrificaram algo tão valioso em prol do próximo! O cordeiro de Deus reconhece que você o imitou, com coragem e desapego que jamais ser humano nenhum manifestou.Ah, se todas as pessoas fossem tão cristãs, tão dispostas a sacrificar aquilo que de mais valioso possuem (a própria salvação) para salvar a alma do próximo!
Mas uma dúvida cruel assalta seu pensamento: e se seu amigo não fosse tão virtuoso quanto aparentava ser? Seu crime então, longe de elevá-lo aos píncaros do paraíso, o lançou às profundidades abissais do inferno.Porém, como poderia você saber disso? Seu ato, independente de seu amigo, teve a melhor das intenções, foi baseado numa pureza de espírito e amor incondicional que só encontra paralelo no próprio sacrifício do Salvador.Então isso é mais do que suficiente para assegurar a sua salvação, não? Certo, você descumpriu um dos mandamentos.Mas o que é isso, comparado com o ato de se elevar a patamar tão próximo ao do Messias? Você deveria ser canonizado, já tem lugar garantido à direita do Senhor.Seu amigo o espera nos jardins verdejantes da Nova Jerusalém.As provações terrenas são ninharias perto da felicidade que o aguarda após a morte.A família de seu amigo sofrerá com a ausência dele, seus filhos crescerão sem pai, em dificuldades.E você vai sofrer por décadas trancafiado em uma prisão.Mas lembre-se de como os primeiros cristãos se martirizavam, encaravam o suplício das arenas de feras com galhardia, certos de que haveriam de ganhar o paraíso por disporem a própria vida nas mãos do Salvador.Este mundo um dia passará.E então, será toda a eternidade que terão para estarem juntos novamente.Deus é o supremo bem, irmãos.Aleluia!
A caridade tem sido usada no decorrer dos tempos como estandarte-mor da propaganda cristã: os mais fanáticos chegam a afirmar que o cristianismo inventou a caridade, numa tentativa pueril de afirmar que durante os 98 000 anos de existência da humanidade até então nunca jamais alguém havia pensado em ajudar quem quer que fosse.Os mais cautelosos não chegam a tamanho disparate, mas enfatizam o quanto a Doutrina Cristã enfatiza e incentiva as pessoas a se ajudarem mutuamente de forma descompromissada, movidas apenas pelo amor a Deus e ao próximo.
Tenho lá minhas dúvidas, mas o cristianismo, não sei se num lapso de coerência ou numa esperta politicagem ideológica, não deixa claro de que maneira nós atingimos a salvação: há passagens que dizem que apenas pela graça de Deus (Ef 2:8-9); pela fé (Gl 2:16); pelas obras (Rm 2:6); pela fé e pelas obras (Tg 2:24)... Como a adoção de uma vertente exclui automaticamente as demais, constatamos que algum deles está necessariamente mentindo, mas não é essa a questão central aqui levantada.Considerando a posição aceita pela Igreja Católica, que é a mais antiga denominação cristã ainda em atividade, somos salvos pela fé e pelas obras.Pois é aí que se encontra o nó górdio.
Se de fato somos salvos pela fé e pelas obras, então não existem ações puramente desinteressadas da parte de um autêntico cristão: sempre que ele praticar uma boa ação, o fará não porque acredite que está agindo certo, ou porque deseja ajudar alguém que ele estima.Estará o fazendo movido pelo desejo egoístico de cavar sua vaguinha na Nova Jerusalém, de preferência pertinho do Cara Lá De Cima.Deste modo, o princípio de salvação pelas obras extingue o altruísmo, o esvazia de significado.Ninguém é caridoso por amor a Deus ou ao próximo, mas pelo desejo de ficar numa posição bem confortável após a morte.
Ou seja, a caridade passa a ser moeda de troca no câmbio paralelo das locações do Paraíso Celeste, como se a pessoa, ao praticá-la, estivesse pagando por seu lugar no céu como um mutuário de imobiliária quita as prestações da casa própria, e o que é pior, num contrato feito às escuras, pois jamais sabemos quanto realmente custa o imóvel.É de surpreender que tal pensamento mesquinho e mercantilista desembocasse na venda de indulgências? Afinal, se Deus aceitava moedas como caridade, respeito, fidelidade e pureza, por que não aceitaria títulos de crédito afiançados pela instituição que o representa na Terra? Ao menos dessa forma o comércio de vagas no paraíso ficava mais do que bem explicitado...